Eu tô te explicando pra te confundir
Eu tô te confundindo pra te esclarecer
Tô iluminado pra poder cegar
Tô ficando cego pra poder guiar (Tom Zé)
As últimas eleições legislativas não só testemunharam um ascenso meteórico do Chega, mas também o descalabro sem precedentes dos partidos de esquerda, do PS (percebido como de esquerda pela maioria dos cidadãos) e, sobretudo, do PCP e o BE, que obtiveram os seus piores resultados da história. Só o Livre fez alguns ganhos, bastante anémicos. Esta derrota não caiu do céu, mas é a culminação de seis anos de estagnação e recuos. Compreensivelmente, os resultados geraram estupor e pessimismo entre amplos setores da esquerda. Todavia, a nossa tarefa não é nem chorar nem rir, mas compreender e tirar as conclusões que permitam reverter esta tendência e rearmar politicamente a classe trabalhadora, começando pela sua vanguarda.
Infelizmente, os dirigentes do PCP e do BE parecem decididos a enterrar a cabeça na areia, persistindo nas suas velhas orientações que levaram ao desastre. Um artigo publicado na véspera das eleições por Manuel Afonso, membro da mesa nacional do Bloco de Esquerda e do coletivo Semear o Futuro, sintetiza estas tendências, dedicando-nos também algumas críticas (embora evite mencionar-nos abertamente). O colectivo Semear o Futuro afirma ser uma tendência socialista revolucionária dentro do Bloco. Uma alternativa socialista revolucionária é exatamente o que precisamos. No entanto, na realidade, os argumentos pessimistas e conservadores do artigo refletem a atitude dos dirigentes reformistas do BE. Se esta atitude for adotada pela esquerda, só conduzirá à desmoralização.
“Escolhas ineficazes”
O artigo de Manuel Afonso é um chamado para coletivos comunistas como o nosso e movimentos sociais como a Greve Climática se lançarem a apoiar o PCP e o BE nas suas campanhas eleitorais, não apenas apelando ao voto crítico (como nós fizemos), mas saindo às ruas para tentar angariar-lhes votos. Essa seria a única escolha “eficaz”. Explica o companheiro:
“Os grupos da esquerda “anti-eleitoral”, depois de muitas críticas, lá apelam ao voto na esquerda. Muito bem. Mas fica a pergunta: se é, então, melhor para a classe trabalhadora o reforço da esquerda… porque devem os revolucionários limitar-se a um “apelo ao voto crítico” nas redes sociais, em vez de se empenharem realmente nesta luta? As e os revolucionários devem ser consequentes e lutar a 100% pelas tarefas a que se propõem, também nas eleições.”
Depois o artigo mergulha em analogias com a Rússia de 1907-1914 e com a política bolchevique. O problema é que a premissa de que o companheiro parte está totalmente errada. Dir-se-ia, lendo o seu artigo, que os resultados eleitorais podem ser determinados, ou modificados substancialmente, pelo esforço de algumas dúzias de ativistas. Mas infelizmente não é o caso. Desta vez, como nas anteriores, nem a mobilização de centenas ou até de milhares de militantes e simpatizantes do PCP e do BE pôde reverter a tendência ao declínio, apesar dos seus denodados esforços. O fator que realmente determina o desempenho do BE e do PCP é a orientação política das direções desses partidos, às quais Manuel Afonso não dedica uma só linha. É a política reformista, rotineira e cinzenta, das direções do PCP e do BE e o seu seguidismo do PS, não só nestas eleições, mas desde os anos da geringonça, que explicam o seu enésimo descalabro eleitoral, e não a posição do CCR ou da Greve Climática Estudantil.
De facto, os recuos da esquerda, longe de fazer com que Manuel Afonso olhe para a trajetória do BE com um olhar mais crítico, empurram-no no sentido contrário: a esbater e minimizar as diferenças com os dirigentes partidários e a fechar fileiras com eles perante a “ofensiva neoliberal e neofascista”. Diz o companheiro:
“A estratégia para o atual período é unir e mobilizar os explorados e oprimidos para resistir à ofensiva da direita e da extrema-direita, para acumular forças para o contra-ataque.”
Mas acumulá-las à volta de que orientação e de que programa? Daqueles que levaram a esquerda ao abismo? Temos o dever de criticar esse programa e os dirigentes que o defenderam, obrigá-los a prestar contas e corrigir o rumo.
O PCP e o BE estão chamados a desempenhar um papel determinante na situação atual, é verdade. Mas não é o papel que Manuel Afonso imagina – o de obterem alguns deputados adicionais no parlamento. A importância destes partidos não jaz tanto na sua força parlamentar como nas suas militâncias, que congregam alguns dos melhores lutadores de classe do país. Eles têm a última palavra na crise da esquerda. Poderão superá-la se corrigirem o rumo reformista desastroso de Paulo Raimundo e de Mariana Mortágua e adotarem uma linha revolucionária. O requisito para esta viragem de rumo, porém, é a clareza e a firmeza política e o olhar crítico. O CCR quer fazer o seu modesto contributo nesse processo de esclarecimento.
“As correlações de forças”
Embora o argumento de Manuel Afonso reflita um certo voluntarismo, baseado na ideia de que o envolvimento eleitoral de pequenos grupos poderia incidir nos resultados do BE e do PCP, é verdade que o companheiro reconhece, de passagem, que a situação objetiva era difícil, falando de uma “correlação de forças favorável aos capitalistas”. Esse é, de fato, o âmago da questão: porque é que a correlação de forças é, supostamente, tão difícil? Debrucemo-nos, pois, sobre essa “correlação de forças favorável aos capitalistas”.
O primeiro a frisar é que, lendo a imprensa burguesa e refletindo sobre os últimos acontecimentos, não há muitos elementos para julgar que a situação seja favorável aos capitalistas. Pelo contrário, há um enorme pessimismo entre a classe dominante. A própria queda de Montenegro e a enésima convocatória de eleições, das que sai um novo governo minoritário apoiado numa aritmética parlamentar complexa, reflete a incapacidade da burguesia de governar como o fazia antes e de impor o programa que necessita. O pano de fundo dessa instabilidade é, acima de tudo, a enorme raiva que existe na sociedade, e que produz guinadas políticas abruptas.
Mas é verdade, sejamos justos com Manuel Afonso, que este grande descontentamento não está a exprimir-se, por enquanto, no voto nos partidos de esquerda. Fá-lo sobretudo através de partidos populistas de direita como o Chega, que canalizam a raiva gerada pela crise contra os migrantes ou contra a corrupção. Como explica isto o companheiro?
“Ainda que não alcance uma solução governativa estável, a classe dominante tem conseguido – através dos seus partidos, da comunicação social, das forças policiais, etc. – implementar uma forte ofensiva ideológica, securitária, racista e armamentista, que ganha lastro nas classes populares, divide trabalhadores e retira forças à luta social.”
Esta interpretação é muito parecida à dos dirigentes do BE e do PCP, com Raimundo, por exemplo, a explicar no congresso do partido em dezembro que se “intensificam a escala global os mecanismos de condicionamento e controlo ideológico, ancorados em gigantescos grupos económicos que controlam os meios de comunicação e as redes digitais”.
Há um velho aforismo liberal que afirma que cada povo tem o governo que merece. Dir-se-ia que isto se tornou na máxima dos dirigentes do BE e do PCP – e de Manuel Afonso. O ascenso do Chega e o declínio da esquerda refletiria a estupidificação da classe trabalhadora portuguesa, que há dez anos dava ao BE os seus melhores resultados da história, e que há seis, nas eleições de 2019, deixava a direita nos ossos, mas que agora, no meio da pior crise que o capitalismo já conheceu, caiu vítima da “ofensiva ideológica” do capital e começou a votar pela direita. É uma interpretação desonesta, que não explica nada, mas que permite, sim, que os dirigentes reformistas do PCP e do BE escondam a sua responsabilidade pela situação atual, colocando toda a culpa na classe trabalhadora. As explicações exculpatórias destes dirigentes só semeiam a confusão entre a militância e a desorientam e desmoralizam. Como na canção de Tom Zé, estes dirigentes estão nos explicando… para nos confundir.
Mas recapitulemos novamente as amargas verdades que Raimundo, Mortágua e Manuel Afonso esquecem. O PCP e o BE obtiveram juntos quase um milhão de votos em 2015. A partir de então, garantiram a António Costa anos de estabilidade parlamentar, aprovando os seus orçamentos enquanto contribuíram para arrefecer o ambiente nas ruas. Aqueles governos pouco fizeram para melhorar a situação da classe trabalhadora, que continuou, no geral, a piorar. De facto, começaram naquela altura os grandes flagelos da crise habitacional e do custo de vida. O reformismo representa, fundamentalmente, uma tentativa de partilhar de forma mais justa as migalhas do banquete da burguesia. A crise do capitalismo supõe, portanto, a crise do reformismo, porque ao haver menos migalhas há menos margem para as reformas. A geringonça foi vítima deste processo.
Qual é a atual perspetiva das lideranças do PCP e do BE? Essencialmente, reeditar a geringonça, prometendo agora espetaculares aumentos salariais e reduções das rendas, que não puderam conseguir em 2015, mas que agora milagrosamente poderiam conquistar, apesar da sua recuada situação e do aprofundamento da crise capitalista global. E ainda mais. Num ambiente de grande raiva e de descrédito de todas as instituições, o PCP e o BE apresentam-se como os grandes defensores do regime, louvando as “conquistas de Abril”, pedindo “convergências alargadas” pela constituição e “contra as ameaças fascistas e pela unidade em defesa da vida democrática e das regras constitucionais”. Numa palavra, aparecem aos olhos de muitas pessoas como esteios do regime. A verdade deve ser dita: se a classe trabalhadora tem virado as costas ao PCP e ao BE, com a consequência lamentável de abrir o caminho a André Ventura, é porque os seus dirigentes pouco ou nada lhe ofereceram, tendo-a mentido e traído.
“Otimistas e pessimistas”
Explica Manuel Afonso: “os coletivos e camaradas que subvalorizam as eleições e a intervenção nelas baseiam-se numa visão otimista da atual situação da luta de classes”. Pois sim, afirmamo-lo novamente: somos otimistas, e temos toda a confiança nas nossas ideias e na nossa classe. O nosso otimismo não é um ato de fé, mas se baseia numa análise sóbria da situação. O capitalismo encontra-se na pior crise da sua história, embrenhado em contradições irresolúveis. Isto reflete-se numa crescente inquietação das massas, que não tem, porém, uma expressão política linear.
Há uma década o pêndulo virava para a esquerda, e não apenas em Portugal. Os recuos e traições dos reformistas, e a fraqueza das forças do comunismo genuíno, travaram temporariamente o processo de radicalização à esquerda. Na procura de uma saída, as massas olham agora para a direita populista, que emprega (demagogicamente) uma retórica radical contra o sistema. Mas elas também ficarão desiludidas com estes populistas, políticos burgueses reacionários que também as “trairão”. Estes partidos não podem impor ditaduras, nem esmagar decisivamente a classe trabalhadora. Apesar do seu caráter reacionário não estamos a falar, por enquanto, de movimentos fascistas. O fascismo é um movimento contrarrevolucionário de massas, que mobiliza a pequena burguesia enlouquecida para destruir o movimento operário e suspender todos os direitos democráticos, impondo um regime totalitário. André Ventura nem pode nem almeja fazer isso. Olhemos só para o caso da vizinha Itália: aboliu por acaso Meloni a democracia? O que temos aqui é um governo capitalista de direita com um pendor mais demagógico.
As massas estão à procura de uma saída à crise e até agora não a encontraram. No futuro, o pêndulo voltará a virar para a esquerda. É assim que a classe trabalhadora aprende, pondo a prova os diferentes programas e partidos. Mas esse processo não será automático, e em boa medida dependerá da nossa capacidade de construir uma força revolucionária que possa canalizar contra o sistema capitalista a enorme raiva que há na sociedade. A missão mais importante neste momento, portanto, não é escorar os dirigentes reformistas em crise, mas tirar todas as conclusões do falhanço da esquerda e preparar-nos para o futuro, formando quadros nas ideias do comunismo, levando essas ideias às lutas e protestos e construindo a organização revolucionária que Portugal (e não só) tão desesperadamente necessita.