Durante o Estado Novo, as políticas para resolver o problema da habitação passaram, grosso modo, por duas fases distintas, cada uma com destinatários diferentes. Inicialmente, o Governo concentrou-se na construção de bairros sociais destinados preferencialmente aos funcionários públicos, com o objetivo de transferi-los das habitações insalubres nos centros urbanos para as periferias. Para aceder a estas habitações, os candidatos eram sujeitos a critérios rigorosos, incluindo a estabilidade no emprego, comportamento moral e profissional, idade (apenas “chefes de família” entre os 21 e os 40 anos), composição familiar e rendimento do agregado. Numa segunda, os planos de realojamento e construção de habitações a rendas “módicas” passaram a beneficiar as classes médias, o que revela um enfoque privilegiado desta classe na política habitacional.
Quando a Revolução de Abril ocorreu o problema da habitação em Portugal era extremamente grave e em contraponto com o resto da Europa. Tínhamos uma carência de cerca de 625.000 alojamentos para as famílias; 25% da população vivia sem condições de habitabilidade; a grande maioria das casas (52%) não possuíam abastecimento de água, energia elétrica (53%), rede de esgotos (60%) ou sequer instalações sanitárias (67%).
Para além dos camponeses nas aldeias, os trabalhadores mais pobres viviam, portanto, em condições deploráveis em casas que não garantiam a privacidade, salubridade e os que conseguiam uma habitação num dos bairros sociais eram segregados para os arredores, ou mesmo para fora, da cidade.
Na verdade, não se tratava de um problema novo e no início da década de 60 estavam identificados cerca de 484.487 fogos (Continente e Ilhas) em falta, tendo o Governo lançando um “plano” que pretendia construir 150.000 fogos nas áreas urbanas de Lisboa e Porto. A realidade era a de pessoas que viviam nos cada vez mais frequentes bairros de lata, casas abarracadas[1][2], em casas sobrelotadas, em parte pela junção de diferentes agregados familiares, mas também pela prática de “subaluga”. Até quartos eram arrendados a famílias! Onde é que já vimos isso acontecer nos nossos dias?
Quando a classe trabalhadora tomou a iniciativa de resolver o problema
Assim que se deu a Revolução toda a população de Lisboa veio para a rua e, além de influenciar a direção da Revolução, também teve consequências diretas na luta pelo direito à habitação e na conquista de outros direitos.
Aproveitando a desorientação da burguesia no rescaldo da revolução, logo em 29 de abril de 1974, 100 famílias da classe trabalhadora ocuparam um bairro social acabado de construir (Bairro Novo da Boavista) e 10 dias depois, entre 1500 e 2000 casas de habitação social seriam ocupadas, como também de casas ainda em construção.
O movimento de ocupação fez-se através da organização dos trabalhadores em comissões de moradores ou de bairro, que visava resolver de uma vez o problema que enfrentavam. Em maio de 1974 organizou-se uma assembleia de moradores em Lisboa, que representava cerca de 230 famílias que viviam em barracas, que reivindicou algo tão elementar como “ruas, água e um novo bairro”. Não apenas em Lisboa, mas no Porto, Setúbal e noutras localidades os moradores se organizaram para exigir o direito a uma habitação digna.
Com o intuito de enfrentar o movimento de ocupação e erradicar os assentamentos precários e insalubres, mas também responder às exigências da classe trabalhadora, foi estabelecido em agosto de 1974 o SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), vinculado ao Fundo de Fomento da Habitação, direcionado principalmente para as camadas mais carenciadas da população. Este serviço visava fornecer apoio financeiro e técnico do Estado, capacitando associações, comissões de moradores e cooperativas na construção das suas próprias habitações. Cada um dos bairros tinha uma brigada técnica, que auxiliava os moradores em questões legais, mas também técnicas (questões arquitetónicas, de materiais de construção, entre outros), que trabalhava em conjunto com os moradores.
Assembleias de moradores
As assembleias de moradores reuniam-se frequentemente (semanal ou quinzenalmente) e destinavam-se a discutir quais os problemas do bairro, das casas, reclamações das autoridades ou de leis ineficazes, equipamentos sociais exigidos, como creches e escolas, redes de saneamento, espaços culturais, ou mesmo a expropriação e ocupação de terrenos e casas vazias.
O justo valor das rendas a serem pagas era deliberado nas comissões de moradores, que fazia depender as rendas de uma percentagem do rendimento do agregado familiar; exigiu-se habitação condigna onde se viver, mas também direito às creches, jardins de infância, lugares de recreio e cultura.
No seio destas assembleias de moradores todas as pessoas tinham voz, homens ou mulheres, jovens, adultos ou pessoas mais velhas; todos tinham tarefas a cumprir, que eram decididas em assembleia e todos trabalhavam para o mesmo objetivo comum.
Chegado a este ponto, é necessário destacar que o movimento pela habitação deve o seu ímpeto ao seu caráter de união e solidariedade no seio dos trabalhadores, composto de diferentes correntes (feminismo, associativismo, marxismo), que aplicou os mesmos princípios organizativos nas empresas e fábricas onde estavam, como também pela produção em cooperativas de produção e de consumo. Todo este movimento de bases foi liderado, em grande medida por mulheres e esteve na origem das diferentes comissões de empresas ou escolas, mas também enquanto meio onde se iniciaram as reivindicações além da habitação, como, saúde, educação ou cultura.
As lições tiradas do movimento de ocupação de casas e expropriação da propriedade privada com vista a realizar o direito à habitação animaram a ocupação de empresas, fábricas e unidades de exploração agrícola, onde tudo era decidido em assembleia.
A luta pelo direito à habitação desembocou num movimento amplo de democratização e participação popular.
Conclusão
No contexto da luta pela habitação e sob o capitalismo, é necessário reconhecer que as políticas habitacionais são moldadas pelos interesses da classe dominante, que procura manter e exercer o controlo sobre os recursos e a propriedade em benefício próprio. Nesse sentido, a propriedade privada da terra e a especulação imobiliária servem como mecanismos de acumulação de capital, perpetuando a desigualdade social e a marginalização das classes trabalhadoras, visíveis na gentrificação das cidades e segregação dos trabalhadores para as periferias das cidades.
O contragolpe, porém, que a burguesia fez em novembro de 1975 teve efeitos diretos no plano da habitação, nomeadamente, através da extinção do SAAL em outubro de 1976. Aquando da sua extinção estavam em atividade 169 operações em todo país e envolvidas cerca de 41.665 famílias de moradores pobres; estavam 2.259 fogos em construção e na iminência de se iniciar mais 5.741.
No entanto, as contradições já estavam presentes antes, ao não se abolir a propriedade privada, até terrenos camarários foram vendidos com especulação; pese embora o Estado fornecesse subsídios não reembolsáveis para a aquisição de materiais de construção, a outra parte do custo total era financiada com juros e com o tempo de amortização facilmente o total pago superava o que tinha sido subsidiado, além de que a lei que autorizava as expropriações continha muitas exceções que permitiam manter a posse privada da propriedade. As câmaras municipais, enquanto representantes do Estado central e interlocutoras neste processo, estiveram na origem de oposição às comissões de moradores, seja através da burocracia que atrasava os processos de expropriação ou mesmo na cedendo ao lobby dos promotores imobiliários.
A luta por habitação digna, portanto, não pode ser dissociada da luta de classes e da necessidade de uma transformação radical das estruturas económicas e sociais. As táticas de ocupação de casas e a formação das comissões de moradores representam formas de resistência e organização dos trabalhadores contra as injustiças criadas pelo capitalismo, mas também apontam para a necessidade de uma visão de longo prazo na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, onde as necessidades humanas sejam priorizadas acima de quaisquer interesses lucrativos da elite capitalista.
Se existem lições que podemos retirar deste período é o poder que vem da organização da classe trabalhadora e que não precisa de esperar pelo Governo para agir. Devemos nos inspirar no legado da luta das comissões de moradores e do que conseguiram conquistar em tão pouco tempo, funcionando no mais amplo princípio da democracia direta, por oposição aos entraves e burocracia do Estado.A sua luta é o símbolo de que a classe trabalhadora unida pode resolver os problemas da habitação e muitos outros se se organizar.
[1] A Câmara Municipal de Lisboa em 1960 realizou um estudo o seu conselho, excluindo a área suburbana, onde identificou existirem 10.900 barracas, valor que aumentou para 14.000 em 1970.
[2] No Bairro da Quinta dos Cedros até arrecadações eram arrendadas para habitação.