Kustodiev The Bolshevik 1

URSS: Estado operário ou capitalismo de Estado?

Em 1917 a classe operária russa lançou-se no assalto aos céus. O triunfo da revolução e a tomada do poder pelos trabalhadores foi o acontecimento mais importante da história da humanidade. Após a Comuna de Paris de 1871, mas desta vez a uma escala infinitamente maior (num país que correspondia a 1/6 do globo) e durante todo um período de tempo (ao contrário das escassas semanas de vida da Comuna), a classe operária expropriou os capitalistas e latifundiários e lançou-se na epopeia de contruir uma nova sociedade sem explorados, nem exploradores.  

Esse intento acabaria, porém, por fracassar e em 1991 a própria URSS acabaria por se desintegrar, sendo hoje a Rússia e os demais países que emergiram desse colapso, Estados burgueses, sociedades plenamente integradas na economia capitalista mundial.  Contudo, compreender as razões desse falhanço, avaliar com rigor o que foi a experiência soviética não é uma curiosidade académica, mas uma necessidade vital do movimento comunista para, não apenas rebater todo a propaganda e lixo com que a burguesia tenta, ainda hoje, soterrar a memória da revolução de Outubro, o seu impacto e legado, mas também para evitar no futuro igual desfecho e derrubar de vez o capitalismo, pondo fim definitivo a todos os seus horrores e inaugurando uma nova era para a humanidade. 

A Revolução Russa 

Ao contrário do que Marx e Engels tinham perspetivado, a revolução operária não começou por triunfar num dos mais avançados países capitalistas do mundo, mas num país relativamente atrasado onde o proletariado era uma minoria social.  

Contudo, é importante notar que o desenvolvimento dum país atrasado não se faz repetindo simetricamente todos os passos tomados pelos países mais avançados, desde a revolução industrial. Pelo contrário, tal como o Trotsky explicou “o capitalismo não se desenvolveu na Rússia a partir do sistema artesanal. Realizou a conquista do país, tendo por detrás dele o desenvolvimento económico de toda a Europa”. Sob pressão do desenvolvimento dos países vizinhos, com o apoio do Estado Czarista e também com recursos a capitais estrangeiros, o desenvolvimento na Rússia dar-se-ia por ”saltos”, permitindo que um setor extremamente moderno da economia pudesse existir de forma combinada e desigual com os mais atrasados setores. Era assim que, no início do século XX, a par duma imensa maioria camponesa cultivando a terra com métodos de há mil anos, sob a opressão e chicote da aristocracia russa, se concentravam nas grandes cidades algumas das mais avançadas e maiores unidades fabris da Europa onde laborava um jovem, crescente e combativo proletariado. 

Esse desenvolvimento peculiar iria ter consequências na forma como se desenvolveria a revolução russa. Ao contrário do Ocidente, a burguesia não tinha aqui feito a sua própria revolução, apeando o Czar e a nobreza do poder e varrendo o feudalismo como acontecera em França em 1789. Pelo contrário, apoiara-se no Estado e (em boa medida) fundira-se com a aristocracia terratenente, ligando-se a ela por mil e um interesses. Em paralelo, como o desenvolvimento da grande indústria, comércio e finança, veio o desenvolvimento do proletariado e o temor que este lhe despertava. Tudo isto impelia a burguesia russa à conciliação com o czarismo e a reação. Assim, a revolução burguesa que estava por fazer na Rússia e a conclusão das suas tarefas teria de ser feita pelo proletariado no poder. Mas uma vez conquistado o poder pelo proletariado, este não se deveria deter nas tarefas “democráticas”, não se deveria constranger a limites ou barreiras artificiais, mas, pelo contrário, deveria tornar-se a revolução permanente, avançando os trabalhadores com as tarefas socialistas da revolução.  

Baseado na revolução derrotada de 1905, escrevia Trostky: “É possível que os operários conquistem o poder num país economicamente atrasado antes de o conquistarem num país avançado. Em 1871, os operários tomaram deliberadamente o poder na cidade pequeno-burguesa de Paris; só por dois meses, é verdade, mas, nos centros ingleses ou americanos do grande capitalismo, os trabalhadores nunca tiveram o poder, mesmo por uma hora, nas suas mãos. Imaginar que a ditadura do proletariado depende, de algum modo automaticamente, do desenvolvimento e dos recursos técnicos de um país, é tirar uma conclusão falsa de um materialismo “económico” simplificado até ao absurdo. Este ponto de vista nada tem a ver com o marxismo. Na nossa opinião, a revolução russa criará condições favoráveis à passagem do poder para as mãos dos operários — e, se a revolução prevalecer, é o que se realizará com efeito — antes que os políticos do liberalismo burguês tenham tido a possibilidade de poder mostrar plenamente a prova do seu talento para governar. 

Foi exatamente nestas linhas que se desenvolveria a revolução na Rússia em 1917. 

Da revolução mundial ao “socialismo num só país” 

Nem Marx, nem Lenine, alguma vez postularam que o socialismo pudesse ser contruído num só país, muito menos num país atrasado como a Rússia! Se no capitalismo o desenvolvimento da produção, a certa altura, entra em contradição com os limites do Estado-nação, cria o mercado mundial e a divisão internacional do trabalho, impondo o imperialismo moderno, como poderia o socialismo ou uma sociedade em transição para o socialismo confinar-se nos estreitos limites do Estado nacional, ainda que esse país fosse o mais extenso do mundo? Tal como não é possível o capitalismo funcionar num só país, também não é possível construir o socialismo num só país, como Estaline iria proclamar pouco depois da morte de Lenine. 

Aliás, poucos meses após o triunfo de Outubro, dirigindo-se ao 7º congresso do Partido Bolchevique, Lenine não poderia ter sido mais claro sobre a relação entre a revolução na Rússia e a revolução mundial ao afirmar:   

Quanto mais atrasado for o país que, devido aos zigzags da história, provou ser o único a iniciar a revolução socialista, mais difícil será para esse país passar das velhas relações capitalistas para as relações socialistas. Esta é a maior dificuldade da revolução russa, o seu maior problema histórico – a necessidade de resolver problemas internacionais, a necessidade de evocar uma revolução mundial, de efetuar a transição da nossa revolução estritamente nacional para a revolução mundial (…) Eu repito a nossa salvação de todas estas dificuldades é uma revolução europeia. 

E que dificuldades eram essas?  A revolução de Outubro triunfante num país atrasado, com uma enorme massa camponesa e devastada por anos de guerra mundial, não teve vida fácil desde os seus primeiros dias.  Se a tomada do poder foi relativamente pacífica, tal era a legitimidade dos sovietes, a unidade da classe trabalhadora e adesão dos camponeses pobres ao programa do partido bolchevique, a guerra civil que se seguiu nos anos seguintes estimulada e alimentada pelas principais potências imperialistas foi terrível. Aos exércitos contrarrevolucionários brancos, armados e financiados pelos vários governos capitalistas do mundo, somou-se ainda a invasão da Rússia por 15 exércitos estrangeiros, com os franceses tomando Odessa no Sul, os britânicos ocupando Murmansk no Norte ou os americanos desembarcando em Vladivostoque no extremo-oriente. A destruição desses anos foi tremenda: a guerra e o cerco económico movidos pelo imperialismo provocaram a queda abismal da produção agrícola e industrial, a hiperinflação, a fome e a despovoamento das grandes cidades como Petrogrado ou Moscovo.  

Apesar das terríveis circunstâncias, graças ao heroísmo e sacrifício da classe operária, foi possível ao exército vermelho organizado por Trotsky vencer a guerra civil e a intervenção estrangeira. Contudo, a classe operária que fizera Outubro em boa medida desaparecera, ou porque tombara na frente da batalha, durante a guerra civil, ou porque fora absorvida pelas tarefas da direção do novo Estado soviético, ou ainda porque migrara das cidades de volta aos campos, dado o colapso daqueles anos. 

Nos anos imediatamente seguintes à revolução, as duras condições económicas, longe de estimularem a participação das massas nos seus órgãos de poder, nos sovietes, subjugaram os trabalhadores ã luta quotidiana pela sobrevivência, instalando-se progressivamente o cansaço, a apatia e o alheamento. Ou, tal como Marx já refletira em A Ideologia Alemã, independentemente dos desejos subjetivos dos homens, sem o desenvolvimento das forças produtivas “só a penúria se generaliza, e, portanto, com a miséria também teria de recomeçar a luta pelo necessário e de se produzir de novo toda a velha porcaria

Num país isolado, pobre e com um enorme atraso cultural, isso resultou na cristalização duma burocracia que (pelo grau de instrução, especialização técnica ou estatuto político) foi chamada a administrar a escassez, elevando-se acima das condições de vida da classe trabalhadora e da qual paulatinamente se foi separando, gerindo em seu nome e em seu lugar as indústrias, as empresas, os serviços, os sovietes, o Estado.  

As condições materiais de existência determinam a consciência social”. A burocracia emergente tinha os seus interesses e desígnios próprios: permanecer na liderança da sociedade e do Estado, recolhendo o poder, rendimento e prestígio daí decorrentes. Essa burocracia ganhou uma expressão política dentro do partido bolchevique, cuja defesa dos seus interesses de casta acabaria por ser personificada em Estaline. O “socialismo num só país” era tão só o reflexo do desejo da burocracia em ultrapassar a tormenta revolucionária para placidamente se dedicar ao governo do país… 

Sobre a natureza do Estado 

“Entretanto, por exceção há períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face das classes. Nesta situação, achava-se a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII, que controlava a balança entre a nobreza e os cidadãos; de igual maneira, o bonapartismo do primeiro império francês, e principalmente do segundo, que jogava com os proletários contra a burguesia e com esta contra aqueles.” Engels, A Origem da família da propriedade privada e do Estado 

Para os comunistas, o Estado não é o resultado duma “ideia moral” ou um poder imparcial e equidistante erguido para arbitrar as disputas na sociedade ou para promover o “bem comum”. Na obra citada, Engels explica como o Estado surge como consequência do desenvolvimento das forças produtivas, a divisão social do trabalho e a emergência das classes na sociedade, com as suas contradições insolúveis e inevitáveis lutas.  E foi para evitar que as classes em luta acabassem por se devorar e à sociedade que o Estado emergiu como um poder aparentemente acima da sociedade, mantendo o conflito latente entre as classes dentro dos limites da ordem.  

Porém, explica ainda Engels: como “o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida”.  

Dotando-se do monopólio do uso legal da violência e constituindo-se, em última instância, como um corpo de homens armados em defesa da propriedade e das relações sociais existentes, mas dotando-se de todo o tipo de instituições e instrumentos de coerção, o Estado desenvolve a par todo um aparato burocrático financiado pela recoleção de impostos. É por isso que os altos funcionários, a burocracia estatal, põe-se, portanto, por cima da sociedade, “distanciando-se cada vez mais”.   

E é assim que, em momentos “em que as lutas de classes se equilibram de tal modo”, o Estado, o “executivo”, foge a todo o tipo de controlo, incluindo da classe dominante. Dá-se um fenómeno que temos visto muitas vezes ao longo da história: o “cesarismo” no período de decadência da república romana, o regime da monarquia absoluta na última etapa do feudalismo e o “bonapartismo” na época contemporânea.  Um regime bonapartista tenta equilibrar-se entre as classes, apoiando-se ora numas, ora noutras. O César, o Bonaparte, o Ditador, fala em nome da “nação”. Mas por detrás de toda a demagogia, o Estado, à semelhança de qualquer outro, representa a defesa das relações de produção existentes, embora neste caso através do aberto “domínio do sabre”. 

No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx descrevia-o assim: “Bonaparte descontou para ela [a burguesia] esse futuro quando, a 4 de dezembro, fez com que o exército da ordem, inspirado pela aguardente, fuzilasse em suas janelas os eminentes burgueses do Bulevar Montmartre e do Bulevar des Italiens. A burguesia fez a apoteose da espada; a espada a domina. Destruiu a imprensa revolucionária; sua própria imprensa foi destruída. Colocou as reuniões populares sob a vigilância da polícia; seus salões estão sob a Guarda Nacional democrática; sua própria Guarda Nacional foi dissolvida. Impôs o estado de sítio; o estado de sítio foi-lhe imposto.”   

Porém, ao mesmo tempo que disparava sobre a burguesia de Paris, Luís Bonaparte protegia as relações sociais burguesas, porque era sobre estas relações, sobre o modo de produção burguês, que o seu poder repousava: e foi em nome da “ordem burguesa” que, naquele momento, foi tão longe como reprimir a própria burguesia. Ele não pretendia exterminar a burguesia, mas extorqui-la e, para isso, era necessário que esta permanecesse como a classe dominante. Décadas mais tarde na China, noutro episódio célebre, Chan Kai-shek prendeu os burgueses de Xangai quando estes se tinham reunido num jantar em sua homenagem, para lhe agradecer o massacre perpetrado sobre os comunistas e operários da cidade. O “generalíssimo” não se contentou com palmadinhas nas costas: exigiu um resgate a cada um deles pela sua libertação.  

A forma parlamentar é, por isso, o regime preferido pela burguesia: não apenas ele permite lançar um manto de ilusões democráticas que encobrem a verdadeira ditadura do capital, mas também acaba por ser a forma de organização mais fiável do (seu) Estado. 

Embora, pois, o Estado burguês possa assumir várias formas e possa até a burguesia perder o controlo sobre o seu próprio Estado, este, contudo, não perde (quando assume a forma bonapartista) o seu carácter classista.  

Em Portugal, por exemplo, tanto a monarquia constitucional, como a república, a ditadura militar, o Estado Novo ou os governos tutelados pelo MFA nos pós 25 de Abril, bem como o regime novembrista, todos estes diferentes tipos de regimes, embora sobre diferentes roupagens, foram sempre manifestações do Estado burguês em função das diferentes épocas históricas e à medida do desenvolvimento da luta entre as classes.  

Se o Estado burguês pode assumir várias formas e até escapar ao controlo direto da burguesia, não poderia suceder o mesmo a um Estado operário e, dentro de determinadas circunstâncias, desembocar numa forma de bonapartismo proletário? 

O Estado e a Revolução 

A ditadura do proletariado é uma ponte entre as sociedades burguesa e socialista. A sua própria essência confere- -lhe pois um carácter temporário. O Estado que realiza a ditadura tem por tarefa derivada, mas absolutamente primordial, preparar a sua própria abolição.” Trotsky – A Revolução Traída 

Lenine tinha plena consciência do perigo de burocratização do Estado e de como “todas as revoluções anteriores aperfeiçoavam essa máquina em vez de a destruir” (Marx). Nas vésperas da Revolução de Outubro, fugido ao governo provisório escondendo-se numa cabana na Finlândia, Lenine escreveu uma das suas obras mais importantes: O Estado e a Revolução. Baseando-se na experiência da Comuna de Paris e do próprio movimento operário russo, avançava com quatro condições para o garantir o que deveria ser um funcionamento são do Estado Operário baseado nos sovietes: 

1) Eleição e revogabilidade, a qualquer momento, de todos os representantes e funcionários. 2) Todo o representante ou funcionário receberia não mais que o salário médio de um trabalhador qualificado. 3) Rotatividade de funções: “Quando todos forem burocratas por turnos, ninguém será um burocrata.” 4) Nenhum exército permanente, mas o povo armado. 

Indo ainda mais longe, Lenine defende que “O Estado burguês, segundo Engels, não «se extingue,» mas «é suprimido» pelo proletariado na revolução. O que se extingue depois desta revolução é o Estado proletário, ou um semi-Estado“. Para Lenine, portanto, o proletariado não necessitava da imensa máquina burocrática que constituía o Estado burguês (razão pela qual não deveria ser “usado”, mas suprimido), mas apenas de um semi-Estado que se extinguiria à medida que o desenvolvimento das forças produtivas fosse esbatendo e eliminando as diferenças de classe e as próprias classes e, por essa via, o papel coercivo do Estado se tornasse obsoleto. 

Que diferença imensa entre esta perspetiva e os Estados totalitários que em nome dos trabalhadores e das ideias de Lenine foram depois erguidos pelas burocracias estalinistas! Este era o verdadeiro programa dos bolcheviques. Os detratores do marxismo sempre tentam enlameá-lo, identificando Lenine com Estaline e o comunismo com o regime que acabou vigorando na antiga URSS. Nada poderia ser mais distante da verdade! Foram as terríveis condições materiais existente na Rússia após a revolução e o seu isolamento que impuseram o crescente domínio duma burocracia cimentada sobre um país esfomeado e analfabeto, com uma classe operária esgotada por anos de guerra e revolução, pelo fracasso da revolução mundial. 

Nos seus último anos, Lenine estava bem ciente desse perigo e, no 11º congresso do Partido Bolchevique, avisava: “Se tomarmos Moscovo — 4700 comunistas ocupam cargos responsáveis — e se tomarmos esta mole, este montão burocrático, e nos perguntarmos quem conduz quem, duvido muito que se possa dizer que os comunistas conduzem este montão. Para dizer a verdade, não são eles os que conduzem, mas os conduzidos.”  

E refletindo sobre a influência que a velha burocracia czarista, os velhos hábitos que tinham sido incorporados no novo Estado soviético, afirmava: “Ensinavam-nos: acontece por vezes que um povo conquista outro povo, e o povo que conquistou é o povo conquistador e o conquistado é o vencido. Isto é muito simples e compreensível para todos. Mas o que é que acontece com a cultura desses povos? Isto já não é tão simples. Se o povo que conquistou é mais culto que o povo vencido, impõe a este a sua cultura; mas se se dá o contrário, acontece que o vencido impõe a sua cultura ao conquistador. Não se passou algo de semelhante na capital da RSFSR e não se verificou aqui que 4700 comunistas (quase uma divisão completa, e todos dos melhores) se veem submetidos por uma cultura alheia?” 

E que cultura era essa? Era não apenas a cultura da burocracia e dos “altos funcionários” que tudo decidem a partir dos seus gabinetes, mas também a cultura capitalista que se fazia sentir pela introdução da NEP.  

Face à derrota da revolução internacional, ao desastre da guerra civil e ao carácter relativamente atrasado da economia russa, os bolcheviques foram obrigados a recuar das políticas económicas do “comunismo de guerra”, que tinham sido essenciais para a vitória militar sobre a reação e os imperialistas, mas que também tinham cavado um fosso com o campesinato submetido às requisições de géneros agrícolas pelo Estado operário. Foram assim, através da “Nova Política Económica”, retomadas algumas práticas capitalistas, permitindo-se a pequena produção e venda privada, o investimento estrangeiro, etc.  

Isto trazia consigo óbvios perigos. Ainda no 11º congresso Lenine alertava: “Pois bem, passou um ano [desde a introdução da NEP], o Estado encontra-se nas nossas mãos; mas, no plano da nova política económica, funcionou ele neste ano segundo a nossa vontade? Não. Nós não queremos reconhecê-lo: ele não funcionou segundo a nossa vontade. E como funcionou ele? O carro escapa-se das mãos: parece que há uma pessoa sentada a guiá-lo, mas o carro não vai para onde o dirigem, mas para onde o dirige alguém, algo de ilegal, algo de ilegítimo, sabe Deus donde veio, talvez os especuladores, talvez os capitalistas privados, ou talvez uns e outros; mas o carro não anda exatamente como imagina aquele que vai sentado ao volante deste carro, e frequentemente anda de maneira completamente diferente. 

Se a introdução da NEP proporcionou algum alívio e recuperação à economia soviética, também foi criando tensões. Logo em 1923 a chamada “crise das tesouras” manifestou a crescente disparidade entre o crescimento do preço dos produtos industriais e a curva descendente dos produtos agrícolas. Para além destas tensões entre a cidade e o campo, as novas práticas capitalistas (ainda que limitadas) foram criando uma nova classe de “NEPmen”. Estes eram os donos de negócios e empresas privadas e foram paulatinamente tornando-se uma ameaça à revolução, à medida que forçavam o incremento ainda maior do mercado capitalista e, através de trocas desiguais, tanto prejudicavam as empresas estatais como arruinavam os pequenos produtores agrícolas, apoiando-se na burocratização do Estado e alimentando tendências pró-capitalistas no interior do partido.  

Todas estas contradições iriam pôr-se evidentes aquando da crise de abastecimento de cerais em 1927, que precipitou o fim da NEP, a coletivização forçada e a industrialização “acelerada” da economia soviética. 

Dos sovietes ao estalinismo 

“Seria absurdo acreditar que basta ao proletariado, para substituir o capitalismo pelo socialismo, tomar o poder e fazer em seguida alguns decretos. Um sistema económico não é o produto de medidas tomadas pelo governo. Tudo quanto o proletariado pode fazer é utilizar com toda a energia possível o poder político para facilitar e encurtar o caminho que conduz a evolução económica para o coletivismo.” TrotskyBalanço e Perspetivas 

Este é o pano de fundo que permite compreender as divergências no topo da liderança bolchevique nos anos 20. Dado que todos os demais partidos políticos na Rússia se tinham levantado, de armas na mão, contra o novo poder soviético, juntando-se à contrarrevolução, o partido bolchevique acabou tornando-se na única organização política de massas na URSS. Inevitavelmente, os diferentes interesses que procuravam puxar a sociedade para caminhos diferentes, acabaram por encontrar eco, expressando-se no interior do partido que, para mais, exercia o poder. 

Trotsky, Estaline ou Bukharine encabeçaram essas tendências e esses interesses. Amiúde, a intelectualidade burguesa gosta de apresentar essa luta interna e as subsequentes purgas dos anos 30 como (mais) um exemplo da revolução devorando os seus filhos. Porém, essa disputa pela liderança do partido bolchevique não foi reflexo duma luta de egos ou um choque de vaidades: foi uma batalha pelo destino da revolução. 

Basta comparar os pontos em disputa para compreender como cada fação, que emergiu dentro do partido bolchevique, representava interesses distintos.  

Bukharine e os seus apoiantes foram os maiores defensores da NEP, lançando aos camponeses o slogan “enriquecei-vos!” e defendendo a construção do socialismo “a passo de caracol”, sob pretexto de não se hostilizar a pequena-burguesia. 

Trotsky e a Oposição de Esquerda apelavam à adoção dum programa de industrialização massiva de modo a fortalecer o peso do proletariado e aproximar o país dos índices dos países capitalistas mais avançados, encorajando-se a coletivização voluntária e mecanização dos campos e defendendo, em contraste com a tese estalinista do “socialismo num só país”, a revolução internacional como meio de não apenas defender a URSS, mas para efetivamente se alcançar o socialismo.  

E quanto a Estaline? Estaline manobrou num contexto em que o imperialismo não fora capaz de derrotar a URSS, mas a revolução internacional não medrara, em que no interior da URSS o proletariado russo caíra numa certa desmoralização e apatia e por comparação ao fortalecimento dos elementos pequeno-burgueses no campo e na cidade e à cristalização duma burocracia estatal. E sucedendo que “nos períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face das classes” (Engles), Estaline naqueles anos “jogava com os proletários contra a burguesia e com esta contra aqueles.”.  

Foi assim que após a morte de Lenine se juntou a Zinoviev e Kamanev para isolar Trotsky, para depois se unir a Bukharine contra aqueles três e, finalmente, após a derrota da esquerda, se virar contra a ala direita do partido bolchevique. E foi sem melindre ou pudor que, depois de ter escarnecido das propostas da Oposição de Esquerda sobre a industrialização acelerada e a adoção planificação económica, uma vez tendo esta sido desarticulada e derrota, não hesitou Estaline em tornar suas (ainda que com uma aplicação burocrática e brutal, como foi o caso da coletivização forçada) as propostas da esquerda para usá-las contra a direita, quando a crise do abastecimento dos cerais ameaçou o apeio da burocracia soviética pelos Kulaks (camponeses ricos) e a burguesia citadina que emergiram com a NEP. 

Nessa luta de vida e de morte contra a pequena-burguesia da NEP que os ameaçava, Estaline e a sua camarilha não hesitaram em, dessa vez, basear-se no apoio da classe trabalhadora russa, empolgada com os planos de rápida industrialização e coletivização dos campos. Mas embora houvesse um genuíno entusiasmo entre os trabalhadores, o poder estava firmemente conservado nas mãos da burocracia, que levou a cabo a coletivização e a execução do primeiro plano quinquenal, com custos humanos e materiais que poderiam ter sido evitados com uma verdadeira planificação democrática. Porém, esse não era o objetivo da burocracia. Esta defendia as conquistas da revolução, a nacionalização dos meios de produção e as relações sociais que dela emergiram, na condição que estas relações sociais, esta infraestrutura   económica, eram a base do seu poder, a fonte do seu rendimento e privilégios. 

Estaline era, entre toda a liderança bolchevique, provavelmente o menos dotado. Nunca se destacara como teórico, na verdade nunca se lhe conhecera qualquer tipo de ideia original. Em 1917, após a revolução de Fevereiro, defendeu a conciliação com os mencheviques e até a participação no governo provisório. Após Outubro tampouco se destacou a não ser pelos seus fracassos militares e pela forma canhestra, grosseira, com que tratou da questão nacional na sua terra natal, a Geórgia.  

Porém, Estaline era o que poderíamos chamar de um organizador, era determinado e tinha uma capacidade inata para se adaptar, para manobrar e intrigar. Tinha também uma sôfrega sede de poder. Numa época de refluxo da revolução e de desmoralização, entre os “homens dos bastidores”, ele emergiu como o líder natural da burocracia. Estaline “tomou conta do poder não graças às suas qualidades pessoais, mas graças ao apoio duma máquina impessoal. E não foi ele que criou aquela máquina, mas foi ela que o criou a ele”. 

A cristalização da burocracia foi um processo que levou vários anos. De início nem Estaline, nem qualquer dos seus acólitos, teve sequer plena consciência do que representavam as políticas que defendiam ou para onde elas os conduziriam. Os vários zigzags, tanto na política doméstica como no plano internacional, eram não apenas fruto das manobras entre as classes e entre as correntes no partido, mas também resultado duma navegação à vista, duma política empírica, por reação e sempre por detrás dos acontecimentos. Seria já nos anos 30 que o carácter conscientemente contrarrevolucionário do estalinismo plenamente se afirmaria. 

O “coletivismo burocrático” e o “capitalismo de Estado” 

O Estado, que toma por tarefa a transformação socialista da sociedade, sendo obrigado a defender pela coação a desigualdade, isto é, os privilégios da minoria, torna-se, em certa medida, um Estado «burguês», embora sem burguesia. Estas palavras não implicam louvor nem censura; chamam simplesmente as coisas pelo seu nome. Às normas burguesas de repartição, quando incitam o crescimento da força material, devem servir fins socialistas. Mas o Estado adquire imediatamente um duplo carácter: socialista, na medida em que defende a propriedade coletiva dos meios de produção; burguês, na medida em que a repartição dos bens tem lugar segundo padrões de valor capitalistas, com todas as consequências que decorrem deste facto.” Trotsky – A revolução traída 

O desastre das políticas do chamado “terceiro período” da Internacional Comunista que abriram passo à tomada do poder pelos nazis na Alemanha, os sacrifícios que a coletivização forçada provocou, os “processos de Moscovo” e a liquidação física da velha guarda bolchevique, a tragédia da guerra civil espanhola e o pacto germano-soviético no alvor da 2ª guerra mundial, causaram grande perturbação e confusão no campo comunista que se opunha ao Termidor estalinista. 

Trotsky, não obstante a inabalável oposição à burocracia soviética, defendeu até ao fim do seus dias a URSS contra o cerco e agressões imperialistas, em particular naqueles anos em que inexoravelmente se caminhava para a segunda guerra mundial: “não impomos nenhuma condição à burocracia. Quer dizer que, independentemente do motivo e das causas da guerra, defendemos as bases sociais da URSS, se esta for ameaçada pelo imperialismo.”  Porém, no ambiente hostil alimentado pelos crimes da burocracia, muitos daqueles  que pertenciam à esquerda dissidente e até aos círculos “filo-tortskistas”, mas ligados aos meios intelectuais e pequeno-burgueses, vacilaram. 

Começaram a surgir as mais variadas “teorias” para caracterizar a evolução da União Soviética. Bruno Rizzi no seu livro A burocratização do mundo defendia que “a exploração ocorre exatamente como numa sociedade baseada na escravatura… os operários russos já não são mais proletários; eles são meros escravos”. Numa enorme cambalhota teórica concluía, apesar de tudo, que eventualmente seria possível transitar duma sociedade esclavagista para o socialismo! Quanto a James Burnham, autor da The Managerial Revolution, equiparava o estalinismo ao fascismo e ao New Deal. Mais tarde defenderia um ataque nuclear preventivo à URSS.  Este género de literatura era todo um tratado sobre o pessimismo e desespero entre uma camada intelectual em face às derrotas da classe trabalhadora.  

Outra teoria que se haveria de popularizar foi a do “capitalismo de Estado”. O conceito, aliás, precedeu a própria URSS e serviu para caracterizar o tipo de intervencionismo e planificação estatal que a primeira grande guerra exigiu às economias dos países beligerantes. Em relação à URSS, seria primeiro usado por anarquistas como Emma Goldman, “comunistas de esquerda” como Pannekoek e depois até por alguns, como Tony Cliff, dissidentes das ideias de Trotsky. 

Essencialmente, nos seus vários matizes, os defensores desta teoria sustentavam que a burocracia soviética se tinha transformado numa nova classe capitalista e que a economia da URSS (e dos outros países sob influência estalinista após a segunda guerra mundial) era uma forma de capitalismo.  

O problema duma teoria errada, quando formulada por um tipo de pensamento formalista ou impressionista, é que sempre dá azo, não à sua correção em face da realidade objetiva que a desmente, mas à multiplicação dos erros para que a realidade encaixe na teoria. Assim, por exemplo, o “trotskista” Tony Cliff acabaria até por renegar a validade da teoria da revolução permanente, um dos grandes contributos teóricos de Trotsky (que anteviu e enquadrou o curso da revolução russa até Outubro) e elemento central do seu pensamento político!  

Todas estas formulações destinavam-se a dar uma justificação teórica ao abandono da defesa da URSS e a sua equiparação aos Estados capitalistas do Ocidente. Não por acaso, durante décadas, uma das palavras de ordem do movimento político inspirado por Cliff foi “Nem Washington, nem Moscovo”.  

O conceito de capitalismo de Estado seria depois retomado durante o cisma sino-soviético, quando Mao Tsé Tung  e a burocracia chinesa em choque com a burocracia soviética de repente, “descobriram” que afinal a URSS era um país capitalista! 

E a expressão de “repente” não é, de todo, um eufemismo. Em “Sobre o falso comunismo de Khruschov e as suas históricas lições para o mundo” Mao explicava que Estaline “enquanto liderou o Partido e o Estado soviéticos, manteve-se firme na ditadura do proletariado e no rumo socialista, seguiu uma linha marxista-leninista e assegurou o avanço vitorioso da União Soviética no caminho do socialismo”.   

Tudo parecia ir pelo melhor dos mundos. Porém, apesar da firme “ditadura do proletariado” e de várias décadas de “socialismo” (que a liderança soviética afirmou alcançar em meados dos anos 30), afinal na URSS “a velha burguesia e outras classes exploradoras” tinham sobrevivido. Na verdade, segundo Mao, “as tendências capitalistas espontâneas continuaram a existir tanto na cidade como no campo. Novos elementos burgueses e kulaks ainda eram gerados incessantemente” – apesar da indústria nacionalizada e da agricultura coletivizada. 

Que, entretanto, a expansão da indústria nacionalizada e a agricultura coletivizada tivessem, de facto, acabado com a burguesia da NEP e criado uma poderosa e educada classe trabalhadora, com um muito maior peso social do que aquele que tivera no tempo da revolução de Outubro (mas a quem o poder político houvera sido arrebatado) eram “pormenores” que Mao (e os maoistas até hoje) não deixariam que estragassem um bom enredo.  

Mas como poderia a burocracia chinesa (mesmo que o soubesse fazer) avançar com uma explicação científica, marxista, sobre os processos históricos na URSS sem que inevitavelmente as conclusões da mesma lhe fossem também a ela aplicadas? Restava-lhe, por isso, o campo da subjetividade literária: “desde que Khrushchov usurpou a liderança do Partido Soviético e do Estado, houve uma mudança fundamental no estado da luta e classes na União Soviética” por conta de “uma série de políticas revisionistas ao serviço dos interesses da burguesia e rapidamente inchando as forças do capitalismo na União Soviética”. 

Qual cavalo de Troia, Khrushchov (ele próprio colaborador próximo de Estaline) tinha conseguido, a despeito da “firme ditadura do proletariado”, infiltrar e “usurpar” o Estado e, assim, os “novos elementos burgueses (…) formaram um estrato privilegiado na sociedade soviética”.   

Naturalmente para os maoistas, após a morte de Mao, Deng Xiao Ping a despeito duma década de “revolução cultural” e mais de 20 anos de “firme” ditadura do proletariado “rumo ao socialismo”, também ele “infiltrou e usurpou o Estado” e com “uma série de políticas revisionistas ao serviço dos interesses da burguesia”, novos elementos burugueses formariam “um estrato privilegiado na sociedade chinesa”. E já nos anos 80 na “Albânia socialista” novas infiltrações e usurpações”… enfim, percebe-se o padrão. 

A União Soviética vista a partir de Portugal 

Em meados dos anos trinta Estaline anunciava que “a completa vitória do sistema socialista em todas as esferas da economia nacional é agora um facto“ atingindo-se “aquilo que os marxistas por outras palavras chamam a primeira, ou a mais baixa fase do comunismo”. De acordo com a propaganda, o socialismo tinha sido já alcançado ainda quando o 2º plano quinquenal não tinha sequer terminado! 

Durante décadas, essa litania foi repetida por todos os partidos comunistas associados a Moscovo. Tendo sido eles “bolchevizados”, ao longo dos anos vinte, com a expulsão de todas as vozes críticas das políticas soviéticas por imposição da direção da Internacional Comunista nas mãos de Estaline (que a dissolveria em 1943, sem realizar sequer um congresso…), todos os partidos comunistas foram transformados em apêndices da política externa da burocracia soviética, derivando no plano doméstico, ao longo do tempo e cada vez mais, para um reformismo em linhas nacionais. 

Em traços gerais também esse foi o percurso do PCP que, aliás, seria o único partido comunista da Europa ocidental a apoiar publicamente a invasão da Checoslováquia por tropas soviéticas em 1968, denotando até ao fim uma ardente fidelidade à burocracia soviética, quando até outros partidos “irmãos” procuravam estabelecer algumas nuances.  

Quando, por força do impasse criado pela burocracia, Gorbatchov tentou proceder a reformas que pudessem revitalizar o sistema, o PCP que até aí apresentava a URSS como o “farol do socialismo”, embora apanhado de surpresa, rapidamente e como sempre fez suas as inflexões de rumo da liderança soviética. 

Demonstrando que nada entendia do método marxista e nada compreendera da experiência soviética ao longo de 70 anos, incapaz de explicar que as causas da degenerescência burocrática soviética, restava ao PCP desejar que, tendo o PCUS “tomado consciência da situação real e empreendido a reestruturação geral da sociedade, com o objetivo declarado de defender, reforçar e renovar criativamente a sociedade socialista, pusesse ele mesmo fim às só agora descobertas “graves limitações da democracia” e “forte centralização do poder político” com o “afastamento progressivo dos trabalhadores e das massas populares da vida e da participação nos órgãos de decisão”… como se não fora a própria clique dirigente do Partido Comunista da União Soviética a criar e a beneficiar-se durante décadas dessa “forte centralização do poder político”! 

Refletindo também o seu próprio reformismo e conciliação de classes, lamentava ainda o PCP neste comunicado escrito no estertor da URSS a “eliminação de outras formas de propriedade e de gestão, o desprezo pelo papel do mercado” como uma das causas do descalabro.  Ou por outras palavras: para o PCP um dos problemas da edificação do socialismo teria sido a existência de capitalismo a menos nessa construção!  

Curiosamente e também concluindo ter havido “desprezo pelo papel do mercado”, o sector decisivo da burocracia estalinista reconduziria o país de volta à economia capitalista, abrindo-o ao mercado internacional, aos investimentos externos, quer dizer, à pilhagem externa, e a privatização massiva dos bens, recursos e meios de produção.  

Restaurar o capitalismo no início dos anos 90 foi a solução escolhida pela burocracia estalinista para conservar a sua posição, rendimentos e poder, com uma parte significativa dos apparathicks reconvertendo-se, então, na nova classe capitalista. Literalmente, em mais do que um caso, com as privatizações, o antigo diretor comunista comprou a fábrica tornando-se no seu proprietário. 

Anos depois, já com o capitalismo restaurado e ao invocar os 80 anos da revolução de Outubro (1997) o PCP queixava-se que “a construção do socialismo revelou-se mais difícil e complexa do que esperavam os comunistas”. (…) erros graves, desvios e perversões levaram a concepções do estalinismo que não foram superadas”. Mas como tinha sido possível desenvolverem-se tais “perversões”? Que “erros” graves foram esses, quem “desviou” e com que intuito e quem desses desvios beneficiou? Há quase 30 anos o PCP prometia uma “reflexão atualizada”, mas quando lemos hoje nas páginas do Avante! besuntados elogios ao “socialismo chinês” e às suas “grandes conquistas” ou quando somos confrontados com pérolas do calibre “não há democracia na Coreia do Norte? É uma opinião” – percebemos que essa reflexão não avançou um passo. Terá, pelo contrário, dado dois à retaguarda. 

Nem na sangria de quadros que abandonaram o PCP face à implosão da URSS se desenvolveu qualquer explicação teórica sobre o falhanço da experiência do chamado “socialismo real”. Na verdade, a grande maioria limitou-se a abjurar o antigo credo e prosseguir a sua carreira política, agora noutras paragens. 

Mesmo nas cisões dos anos 60, quando sucessivas vagas de dissidências alimentariam o chamado movimento “marxista-leninista”, tudo se resumiria a replicar as fórmulas maoistas sobre a grande traição khruschoviana e a denúncia do social-fascismo soviético: “A restauração do capitalismo na URSS provocou uma alteração radical na sua política externa (…) A União Soviética converteu-se numa potência social-imperialista, tão agressiva como o imperialismo americano.” Ou como diria o já citado Tony Cliff: “nem Washington, nem Moscovo” 

Francisco Martins Rodrigues, antigo militante e membro do comité central do PCP (do qual cindiria, tomando partido pela China maoista), escreveria mais tarde um artigo sobre a natureza de classe da URSS elencando vários dos argumentos comumente usados em torno do conceito de “capitalismo de Estado”.  

Assim, já depois do fim da URSS, Martins Rorigues concluiria que afinal Outubro foi “uma revolução que não pôde ser socialista” e que não podendo “ir além das limitações económico-sociais dessa sociedade [Rússia Czarista] – varreu a velha ordem baseada na servidão, mas não pôde cumprir a sua aspiração ao socialismo e ficou-se pelo lançamento das bases do capitalismo”.  

Os mencheviques, que sempre defenderam que a revolução russa apenas poderia ser uma revolução burguesa, não teriam dito melhor. E, com efeito, não o disseram! Vista isoladamente, a Rússia não tinha de facto condições materiais para construir o socialismo. Porém, os bolcheviques não viam a revolução russa como um fenómeno isolado e desconectado, mas como um elo da revolução proletária internacional pois, à escala europeia e mundial, sim estavam já nessa época criadas as condições objetivas para que, derrubando-se a burguesia, se começasse a construir o socialismo. O único elemento em falta à escala mundial era o fator subjetivo, isto é, o Partido. 

É por isso bizarro que Martins Rodrigues, ao mesmo tempo reconhecendo que era preciso “resistir até à vitória do socialismo nos países mais avançados” tenha concluído que “a esperança de que a Rússia pudesse chegar um dia ao socialismo através da combinação do capitalismo de Estado com a formação de cooperativas sustentou Lenine nos últimos anos em que dirigiu a Rússia”!  

Não se devendo deter o desenvolvimento e a modernização da economia russa, para Lenine e para os bolcheviques, a esperança e destino da revolução russa radicava no triunfo da revolução mundial e foi por essa razão que, nas mais difíceis condições, se lançaram na construção da Internacional Comunista. Que o futuro da revolução russa se jogava no palco da revolução internacional e não nos estreitos limites do Estado-nação, entre cooperativas, empresas mistas ou investimentos externos, é perfeitamente compreensível nas palavras com que Lenine se dirige aos participantes no 3º Congresso da Internacional Comunista:  

“A posição internacional da R.S.F.S.R. distingue-se atualmente por um certo equilíbrio, que, embora extremamente instável, deu origem a um estado de coisas peculiar na política mundial. (…) O resultado é um estado de equilíbrio que, embora altamente instável e precário, permite que a República Socialista exista – não por muito tempo, claro – dentro do cerco capitalista.” 

Mas se fosse verdade, como defendeu Martins Rodrigues, que o capitalismo de Estado na Rússia era uma condição necessária para a “acumulação capitalista primitiva que lhe iria permitir descolar do atraso e tornar-se uma sociedade moderna”, então não só Marx e Lenine estavam errados por não terem vislumbrado que ao modo de produção capitalista deveria suceder ainda outra versão de capitalismo, mas estaria sobretudo justificado o papel histórico da burocracia, como o único protagonista social (pelo menos nos países mais atrasados) capaz de  desenvolver as forças produtivas!  

E com esta fundamentação não estaria então justificada a repressão sobre a classe trabalhadora exercida pela burocracia e a edificação dum Estado totalitário? Embora Martins Rodrigues lamentasse a sua “dimensão gigantesca” como sintoma de “um poder ditatorial sem freio”, dado que “o terror foi a argamassa da edificação do capitalismo de Estado” e que esse capitalismo de Estado era chamado a desenvolver as forças produtivas na Rússia, era apenas lógico que ele concluísse que “só pelo terror se podia impor ordem no caos”.  

É certo que Lenine, no contexto da NEP, Lenine usou o termo “capitalismo de Estado” refletindo uma realidade onde coexistiam unidades de pequena produção privada com grandes consórcios estatais, mas também empresas mistas com capital privado.  

Contudo, como explicaria Trotsky já nos inícios dos anos 30: “Dessas empresas «capitalistas estatais» não resta absolutamente nada hoje. Em contraste, os trusts soviéticos, cuja fortuna parecia tão precária no início da NEP, experimentaram um desenvolvimento formidável nos anos que se seguiram à morte de Lenin. Se, portanto, a terminologia de Lênin fosse usada consciente e conscientemente, seria preciso dizer que o desenvolvimento econômico soviético ultrapassou completamente o estágio do “capitalismo de Estado” e se desenvolveu ao longo do canal das empresas «de um tipo consequentemente socialista»”

Estas ambivalências de Martins Rodrigues apenas se podem explicar pelo esforço de tentar conciliar a evolução da União Soviética a partir, não da realidade concreta, mas dos seus próprios pré-conceitos de décadas. Atente-se como, se por um lado apontava como durante a NEP, nos anos vinte, o partido “mudava de natureza social”, por outro, recusava-se a caracterizar como e através de que protagonistas e políticas se operavam essas mudanças, limitando-se a platitudes fatalistas que nada explicam, como quando afirma: “as lutas que ao longo dos anos 20 envolveram Estaline, Trotsky e Bukharine, exprimiam a insolúvel crise em que se afundava o poder”… 

É por isso que Martins Rodrigues acaba caracterizando a traiçoeira política externa estalinista como “anti-imperialista”, essa mesma política que sacrificou várias revoluções e movimentos revolucionários. Para o marxismo, o desenvolvimento das forças produtivas conduz o capitalismo inexoravelmente ao seu estádio imperialista. Mas aqui, pelos vistos, tínhamos uma forma de capitalismo que, por ser capaz de desenvolver as forças produtivas a um estádio que à Rússia Czarista lhe era impossível alcançar … se tornava afinal “anti-imperialista”!  

Na verdade, o que ele designa como a “consciência equivocada” que a burocracia teria do seu papel durante o consulado de Estaline (na esteira dos “erros e desvios” do PCP) mais não era do que o bonapartismo proletário do regime soviético transposto para arena da política externa, isto é: apoiar-se na luta da classe trabalhadora para chegar a um entendimento com a burguesia internacional e, assim, defender não o proletariado soviético ou internacional, mas proteger os estreitos interesses da clique burocrática.   

Foi a casta dirigente da URSS “anti-imperialista” quando sacrificou a revolução espanhola em 37? Quando firmou o pacto germano-soviético em 39? Quando dissolveu a Internacional Comunista em 43? Quando abandonou à sua sorte a guerrilha comunista grega em 47? Quando reconheceu o Estado de Israel em 48? 

Mas se o papel do capitalismo de Estado era o de favorecer a acumulação primitiva de capital e o desenvolvimento das forças produtivas num país atrasado como a Rússia dos Czares então, por coerência, a mesma análise teria de ser aplicada a todos os países coloniais e semicoloniais ao longo do século XX. E, mais ainda, daqui só poderia concluir-se que aos comunistas restava apoiar, nesses países, a burocratização das revoluções da China a Cuba, do Vietname à Jugoslávia, pois só assim, pelas mãos da burocracia, seria possível desenvolver o capitalismo de Estado, etapa necessária para a acumulação primitiva de capital e para o desenvolvimento pleno das relações sociais que, eventualmente, colocariam fim a todas as formas de capitalismo.  

E levando esta teoria (que não é a nossa!) à sua lógica conclusão, não se poderia também argumentar que esse deveria ser o mesmo destino na revolução do 25 de Abril, dado o carácter atrasado, periférico e dependente do capitalismo português, com um terço da sua população ativa ainda dedicando-se a uma agricultura, quantas vezes de subsistência?  

Se não fora possível fazer a revolução socialista na Rússia de 1917, porque haveria de ser possível fazê-la no Portugal de 75? Na verdade, por coerência, daqui teria de resultar que a melhor opção teria sido apoiar aquelas alas das Forças Armadas que se inclinassem à expropriação da burguesia e estatização económica sob liderança e controlo do MFA, isto é, ao capitalismo de Estado.  E, suprema ironia, não foi isso que fizeram todos aqueles grupos maoístas que desembocaram na UDP/PCP(r) ao atrelarem-se ao Otelo e os oficiais esquerdistas do Copcon? 

Mas porque as contradições não terminam aqui, uma vez que o capitalismo de Estado era chamado a desenvolver as forças produtivas até que este acabasse sendo “um obstáculo às necessidades de reprodução do capital” e se tornava, por isso, necessário “derrubar os entraves à propriedade privada herdados do passado”… como se explica então que, quando esses entraves foram derrubados, no início dos anos 90, a economia e o conjunto da sociedade soviética tenha colapsado, registando uma contração de 40% do PIB, a queda de cerca de metade da produção industrial, o crescimento galopante da miséria, uma significativa redução da esperança média de vida, uma queda abismal de todos os mais significativos índices sociais, culturais e científicos, apenas comparáveis com os de um país derrotado e devastado por uma guerra?  

E tendo, até, em conta peso do investimento externo e da aquisição de bens, a abertura e participação no mercado mundial e a financeirização promovida pelo Ocidente no subsequente desenvolvimento económico dos países da Europa de Leste, em particular naqueles mais facilmente absorvíveis, não se torna evidente que os “entraves derrubados” foram aqueles que se punham no caminho da pilhagem e absorção dos frutos do trabalho de gerações operárias pelas forças do capitalismo mundial?   

E, todavia, mesmo após mais de 30 anos de derrubado o Muro de Berlim e demais “entraves”, as regiões da antiga Alemanha Oriental continuam sendo as zonas mais deprimidas da Alemanha reunificada…  

Sobre a economia soviética 

“A teoria do capitalismo de Estado baseava-se na ideia de que a contrarrevolução política estalinista na Rússia significava uma nova etapa no capitalismo. Isto não diferia em nada do capitalismo “comum”. Alegava-se que a burocracia era uma nova classe dominante. A economia soviética deveria obedecer às leis normais do capitalismo, e assim por diante. No entanto, tal argumento viu-se imediatamente enredado numa série de contradições. Para não ir mais longe, devemos salientar que, se a União Soviética era capitalista (ou capitalista de Estado, isso não faz diferença real para a substância do argumento), então ela tinha que ter a mesma lei de movimento que o capitalismo – ou seja, ciclos expansão e contração. Por mais que você torça e gira, você não encontrará nenhum fenômeno desse tipo. Assim, a adoção de uma falsa teoria leva necessariamente ao abandono do ponto de vista básico do marxismo. Temos aqui uma espécie de capitalismo que conseguiu eliminar a contradição fundamental de uma economia de mercado – um capitalismo sem desemprego, capaz de desenvolver os meios de produção a taxas de crescimento inauditas, ininterruptas por crises de sobreprodução. – Ted Grant – Russia: from revolution to counter-revolution  

Nas mais de três décadas que já nos separam da implosão da URSS a burguesia mundial, a qual nunca lhe ocorreu de caracterizar a URSS como “capitalismo de Estado”, não tem perdido de chance de ver na falência do estalinismo a superioridade económica do seu próprio sistema. O “fim da História” foi até proclamado! 

E, contudo, a revolução de Outubro permitiu que a Rússia, um país atrasado, em poucas décadas fosse capaz de colocar o primeiro satélite e depois o primeiro homem em órbita. Não apenas isso: apesar da terrível destruição da grande guerra, da guerra civil que se lhe seguiu e da segunda guerra mundial (nesta última perderam a vida quase 30 milhões de soviéticos); apesar do boicote e cerco do capitalismo internacional, a revolução de Outubro transformou a Rússia numa superpotência mundial! 

Nas palavras de Trotsky, tinha-se provado que ”o socialismo demonstrou o seu direito à vitória, não só nas páginas de O Capital, mas numa arena o económica a cobrir a sexta parte da superfície do globo; do não cimento na e linguagem da dialética, mas na do ferro, da electricidade.”  

Estas palavras foram dadas à estampa em plenos anos 30 quando, em plena grande depressão, no meio da maior crise do capitalismo internacional, a URSS alcançava enormes taxas de crescimento económico, multiplicando várias vezes a produção industrial e de energia, lançando grandes infraestruturas, das barragens aos caminhos de ferro. A par, a URSS deixou de ser um país onde grassava o campesinato e o analfabetismo em 1917 para se tornar no país do mundo com a mais poderosa classe operária industrial e com a maior taxa de engenheiros e cientistas per capita.  

Esse rápido desenvolvimento económico, social e cultural da URSS só foi possível com base na nacionalização dos meios de produção e na planificação económica, com base nas relações sociais e forma de propriedade herdadas da revolução de Outubro. Mas, apesar dos êxitos extraordinários, a produtividade por trabalhador continuou sempre, ao longo da sua existência, inferior na URSS ao registado nos países capitalistas mais avançados. 

Ainda que a revolução tivesse triunfado num (ou mais) países capitalistas avançados, a herança material e cultural do passado seria ainda insuficiente para permitir a cada um ”receber de acordo com as suas necessidades” independentemente do trabalho fornecido. A necessidade de prover o crescimento das forças produtivas e de repartir o produto do trabalho numa sociedade sem plena abundância obrigaria, inevitavelmente, às normas do salário, da quantidade e produtividade do trabalho e do valor por si criado. 

Ou, como antecipara Marx na Crítica do programa de Gotha: “Aquilo com que temos aqui a ver é com uma sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir da sua própria base, mas, inversamente, tal como precisamente ela sai da sociedade capitalista; [uma sociedade comunista], portanto, que, sob todos os aspectos — económicos, de costumes, espirituais —, ainda está carregada das marcas da velha sociedade, de cujo seio proveio.”   

Em polémica com Tony Cliff e a sua teoria de Capitalismo de Estado, Ted Grant acrescentaria ainda:  “No período transicional, a distribuição continua sendo indireta – só gradualmente a sociedade obtém o controle total do produto – e, por esta razão, a produção de mercadorias e o intercâmbio entre os diferentes setores da produção necessariamente deve ter lugar. A lei do valor se aplica e deve se aplicar até que exista acesso direto ao produto pelos produtores. Isto só pode acontecer com a socialização total da produção e da distribuição, em que cada indivíduo recebe aquilo que necessita”

Após Outubro, iniciou-se a transição para o comunismo, mas este, de facto, nunca foi alcançado. Mesmo o elevado grau de desenvolvimento das forças produtivas experimentado, durante algum tempo com a planificação económica, apenas permitiu à URSS colocar-se a par, mas em vários domínios permanecer ainda por detrás, das mais avançadas economias capitalistas. 

Enquanto foi tarefa da economia soviética copiar as técnicas, assimilar a tecnologia, transplantar a organização da produção dos países avançados, como referiu Trotsky,bem ou mal, o período de cópias e imitações ainda pôde se acomodar ao automatismo burocrático, ou seja, à asfixia do espírito de iniciativa e criação. Porém, quanto mais se desenvolvia a economia e mais complexas se tornavam as suas exigências, tanto mais insuportável se tornava o obstáculo do regime burocrático – do regime burocrático que se instalara ao longo dos anos vinte e que usurpara o poder das mãos da classe trabalhadora. 

Essa planificação centralizada sem qualquer tipo de controle ou fiscalização democrática, realizada em cima das costas da classe trabalhadora, durante algum tempo conseguiu desenvolver as forças produtivas na URSS, não porque a burocracia desempenhasse qualquer papel essencial à produção, mas porque esse desenvolvimento se baseava na propriedade nacionalizada. E fê-lo com um custo humano e material muito mais elevado do que teria sido necessário pagar, caso houvesse um Estado operário são na URSS.  

Sem o controlo do Estado pela classe operária, a corrupção, o nepotismo, a incompetência, os gastos no aparato securitário e militar e o chauvinismo económico autárquico da burocracia, acabaram por transformá-la dum freio relativo ao desenvolvimento das forças produtivas num travão absoluto quando a economia se tornou demasiado sofisticada para suportar a asfixia dessa “excrescência parasitária” sobre o Estado operário. 

Como escreveu Engels, “A propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é solução do conflito, mas abriga já em seu seio o meio formal, o instrumento para chegar à solução.” Com isto temos a possibilidade da produção já não decorrer dos caprichos das forças cegas do mercado, mas da planificação consciente, de ela já não ser orientada para a obtenção do lucro imediato, mas para o desenvolvimento geral e para a satisfação das necessidades das massas, permitindo guindar a sociedade a novas alturas. Infelizmente na URSS o domínio da casta burocrática acabaria por deformar e por fim condenar essa possibilidade. 

Mas a burocracia que, de modo bonapartista, tomou conta do Estado Operário, ter-se-ia transformado numa nova classe dominante, dando origem a um capitalismo de Estado ou a um “coletivismo burocrático”? Obviamente que não! “O Estado é o instrumento do governo de classe, da coerção, um polícia glorificado. Mas o polícia não é a classe dominante. A polícia pode tornar-se desenfreada, pode tornar-se bandida, mas isso não a converte numa classe capitalista, feudal ou escravocrata. (Grant) 

A burocracia apropriava-se da mais-valia criada pelos trabalhadores, ela embolsava uma enorme e desproporcional quantidade do rendimento nacional, mas fazia-o sob a forma de abuso do poder, em virtude da sua autoridade, não da sua propriedade. Ela não era, de facto, proprietária dos meios de produção. Ao contrário do capitalismo onde verificamos a contradição entre a produção que tem com um carácter social e apropriação individual capitalista, na URSS a apropriação, distribuição e uso dos frutos do trabalho era não individual, mas estatal.  

Afirmar que a burocracia detinha os meios de produção por controlar o Estado, seria como dizer que o Estado era proprietário do próprio Estado! Na URSS a propriedade nacionalizada não poderia ser vendida, comprada, permutada, transmitida ou herdada. Na verdade, se a burocracia fosse uma classe dominante os burocratas teriam a capacidade de se perpetuarem através do simples funcionamento do próprio sistema económico… Mas a posição de todo o burocrata era incerta e estava dependente do jogo e das decisões políticas e não do seu papel específico na produção social, tal como os seus privilégios advinham não das suas funções na esfera da produção, mas na da distribuição… 

Precisamente por isso, e tal como Trotsky previu, caso a burocracia não fosse derrubada pelos trabalhadores através duma revolução política na URSS, ela inevitavelmente acabaria por restaurar o capitalismo precisamente para poder possuir, vender, comprar, permutar, transmitir e herdar o capital e os meios de produção tal como o faz a classe capitalista.  

O facto que o derrube da burocracia pelos trabalhadores implicaria deixar intocada a estrutura económica básica, revolucionando apenas a forma de organização política é, por si só, eloquente de que não estávamos na presença dum novo modo de produção, duma nova classe dominante, mas duma variação burocraticamente deformada do Estado Operário. 

A este respeito, Tony Cliff tem uma passagem que chega ser divertida. Ao pretender provar a sua tese sobre o “capitalismo de Estado”, acaba por inadvertidamente reconhecer que as formas de organização do Estado podem mudar, mantendo-se as relações sociais que lhe estão na base: na França, em 1830, houve uma revolução política. A monarquia foi derrubada e uma monarquia constitucional estabelecida. Isso não mudou a configuração social porque os donos da riqueza eram os capitalistas, não o Estado.   

Tal como na França do século XIX e XX o Estado burguês conheceu várias expressões, tendo até, em alguns casos, emergidou regimes bonapartistas, mantendo-se as relações sociais da revolução de 1789,  também na URSS ocorreu igual fenómeno: criado em Outubro, o Estado operário baseado na democracia dos sovietes, pelas razões já mencionadas, burocratizou-se, transformando-se num bonapartismo proletário ou num Estado operário deformado. 

Como seria possível, de resto, ter surgido na URSS (e nos demais países ditos “socialistas”) um capitalismo sem boom económico e recessão, sem propriedade privada dos meios de produção, sem liberdade de comércio, capaz de proporcionar um crescimento económico ininterrupto durante décadas, com ritmos nunca igualados pelo capitalismo “liberal” para o qual, supostamente, acumulava capital? Que capitalismo era afinal esse onde nunca se verificaram crises de sobreprodução?  

Na realidade, enquanto foi sendo capaz (ainda que de modo bastante imperfeito) de assegurar o desenvolvimento dos meios de produção e com eles os seus benefícios materiais, o seu prestígio social e o seu poder político, a burocracia manteve as relações sociais de Outubro (e com elas as vantagens sociais que gozavam os trabalhadores desses países, por comparação ao capitalismo), mas assim que o sistema entrou num impasse (e esse impasse traduziu-se não numa crise de sobreprodução ao modo capitalista, mas numa crise de estrangulamento burocrático da economia), ela seguiu em direção à restauração capitalista, precisamente para os manter.   

As várias décadas de controlo dos Estados operários pela burocracia e consequente alienação da classe trabalhadora dos valores da revolução de Outubro e dos ideais (efetivamente) comunistas, combinado com o boom capitalista da segunda metade dos anos 80 e a ausência duma corrente revolucionária de massas, tanto no ocidente como na Europa de Leste, resultou numa transição para o capitalismo sem quase oposição da classe operária. 

Isso foi uma verdadeira catástrofe tanto para as classes trabalhadoras desses países, como para a classe operária internacional, tanto no plano material como no plano da consciência. 

Embora, por coerência, aqueles que caracterizavam a URSS como “coletivismo burocrático” ou “capitalismo de Estado” não deveriam ter rejubilado pelo libertar das forças produtivas dos grilhões dum capitalismo coletivista que, pela lógica das suas teorias, nos colocaria mais próximos da revolução proletária, uma vez que ela apenas pode suceder a partir do capitalismo tout court? Ou dito de outro modo, não deveriam ter saudado o advento dum capitalismo democrático e liberal nascido das cinzas dum capitalismo de Estado totalitário que, pela sua natureza, tornaria mais fácil a luta dos trabalhadores? E sendo uma fase superior de acumulação capitalistas, não estariam, enfim, criadas as condições materiais para que finalmente a classe trabalhadora tomasse o poder? 

Na verdade, a extensão do colapso e o retrocesso que causou na consciência da classe trabalhadora a nível mundial foi de tal ordem, que todos aqueles que defendiam as teses do “capitalismo de Estado” caíram isolamento e no pessimismo, quando não capitularam abertamente.  

O colapso do Estalinismo não foi, contudo, o fim da luta de classe. Sobre os escombros do mal chamado “socialismo real” os burgueses, em particular o imperialismo americano, declararam-se triunfadores da História – esta teria até chegado ao fim com a superioridade e suserania universal do capitalismo. Porém, pouco mais de trinta anos volvidos, há uma nova geração de trabalhadores que está confrontada não com o estertor da burocracia soviética, mas com a crise geral do capitalismo que se manifesta na austeridade e ataques permanentes aos trabalhadores, na sucessão de guerras e conflitos, ne depredação ambiental e alterações climáticas.  

A crise capitalista todos os dias está a criar novos comunistas. Inexoravelmente empurrará os trabalhadores para a revolução. É uma questão de tempo. Tempo que devemos utilizar para nos organizarmos em torno de ideias claras, perspectivas corretas e métodos sãos, em torno do comunismo revolucionário. 

A ti que nos lês esse é o convite que te endereçamos: junta-te ao Coletivo Comunista Revolucionário. Juntos resgataremos as melhores tradições do bolchevismo e faremos um novo Outubro. 

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