PERSPETIVAS NACIONAIS

Perspetivas nacionais: Da estagnação à crise, da crise à revolução

A crise sistémica do capitalismo

As “perspetivas”, para qualquer organização política, são uma bússola para definir o seu rumo, o seu programa e a sua ação. 

Este documento, partindo duma caraterização da situação geral do capitalismo, da evolução e subordinação da economia portuguesa às suas tendências gerais, procura, pois, a partir dessa análise, enquadrar e orientar a atividade e posicionamentos do coletivo Comunista Revolucionário no próximo período.

Nas últimas décadas a economia capitalista dispôs de duas importantes alavancas: a globalização e o crédito. Mas essas alavancas, porém, tornaram-se no seu oposto. 

Quantas vezes não escutámos os economistas e políticos burgueses repetirem o mantra sobre a “mão invisível do mercado”? 

Porém, tanto na crise financeira de 2008 como durante a pandemia Covid 19, a burguesia só conseguiu salvar o seu sistema através da intervenção dos Estados, gastando eles enormes quantidades de dinheiro que não possuíam. 

Mas se em 2008 boa parte do dinheiro injetado serviu para tapar os buracos das imparidades, ativos tóxicos e dívidas incobráveis, não chegando chamada à economia real, já durante o Covid essas injeções financeiras, tendo chegado às empresas e, em menor medida, aos bolsos dos trabalhadores, acabaram por inundar o mercado com um excesso de liquidez monetária precisamente numa altura em que, dados os constrangimentos da pandemia no normal funcionamento das cadeias de produção e abastecimento restringiam o acesso aos bens. 

Tudo isso e o início, logo depois, da guerra da Ucrânia e as sanções à Rússia, maior produtor mundial de commodities promoveram a espiral inflacionária dos últimos anos, o que muito tem penalizado as condições de vida dos trabalhadores e que obrigou os bancos centrais, como antídoto para conter a inflação, a uma subida dramática das taxas de juro, agravando mais ainda a pressão do endividamento sobre as famílias trabalhadoras, mas também sobre as empresas e os Estados.

Através do crédito foi possível expandir o capitalismo para além dos seus limites naturais, mas a dada altura a acumulação de dívida (que inicialmente promoveu o investimento e o consumo) inevitavelmente tornou-se num fardo. 

Atualmente, estima-se que a dívida mundial se situe nos 330 triliões de dólares ou cerca de 300% do PIB Mundial. Isto é inaudito e insustentável!  Deste modo, a burguesia mais não tem feito que empurrar os problemas com a barriga, mas, mesmo descontando a possibilidade dum crash financeiro futuro, o crédito barato do passado (os juros chegaram a ser negativos) poderá não regressar tão cedo.

Paralelamente, a globalização, que expandiu o capitalismo com a abertura de novos mercados, e especial nos anos 90 como a China, Índia ou Europa de Leste, proporcionando a exportação de capitais que forçou e aproveitou a privatização de bens e serviços públicos, chegou agora a um impasse. 

A exportação de capitais e a deslocação industrial contribuíram para a emergência de novas potências, das mais notáveis a China, que agora ameaça a hegemonia americana. 

Mas não apenas a China, também a Rússia que, embora sem o potencial económica da primeira, foi capaz de parcialmente se reerguer da catástrofe que foi a restauração capitalista nos anos 90 e se apresenta hoje como uma potência militar de primeiro plano enfrentando a NATO na guerra da Ucrânia, procurando refazer as suas tradicionais esferas de influência. 

Outros países como Índia, Brasil, Turquia ou Arábia Saudita ganharam, entretanto, uma capacidade de manobra, balançando-se entre os Estados Unidos e os seus novos rivais. 

Este declínio dos Estados Unidos é, contudo, relativo. Estes continuam a ser a principal potência imperialista, através duma produtividade do trabalho superior à dos seus rivais, da predominância do dólar como moeda internacional de comércio e de reserva, bem como no aparato e despesas militares com os americanos a gastarem tanto na Defesa como o total dos restantes 10 países que lhe sucedem.

Aquilo a que se chama a ascensão do chamado mundo multipolar mais não é do que a manifestação do agravamento das rivalidades imperialistas que, no plano militar, se observa na guerra da Ucrânia e noutros conflitos bélicos e, no plano económico, no agudizar da guerra comercial potencialmente de todos contra todos, apesar do esforço de eventuais formações de alianças e/ou bloco económicos. 

A tendência ao protecionismo mais não é do que a tentativa de exportar o desemprego e a crise para os outros países. Esta é uma tendência que não começou com Trump nem se limita a ele. 

Ainda durante a administração Biden, a aprovação dos  Inflation Reduction Act (IRA) and the CHIPS and Science Act que proporcionam imensos incentivos à deslocalização de indústrias para o solo americano foi um exemplo dessa guerra comercial latente. 

Mas, sem dúvida, Trump é um “acelerador” da história, não tanto pelo estilo pessoal ou pela sua persona, mas por representar um setor da classe dominante americana que compreendeu os limites do poder americano e a necessidade de se re-entrincheirar para fazer face aos novos rivais. “America first” significa necessariamente o resto do mundo no fim.

Nós comunistas não guardamos qualquer expectativa nem alimentamos qualquer ilusão em relação à “multipolaridade” ou aos BRICS, conjunto de países – as chamadas “economias emergentes” – que se associaram para poder projetar seu crescente poder económico no plano geopolítico, potencializando-o. 

As classes dominantes dos países membros do BRICS não querem um “desenvolvimento mais equitativo”, mas, como todas as classes dominantes das demais nações capitalistas, querem uma parcela maior do “desenvolvimento”, isto é, do comércio mundial, do acesso às matérias-primas, energia e esferas de influência. 

Essa disputa é já, por si só, uma receita acabada para a instabilidade e a multiplicação de conflitos e guerras. Fará do mundo um lugar ainda mais perigoso. 

Ademais, esperar (como alguns o fazem na esquerda) que um mundo melhor pode nascer da associação de oligarcas russos, capitalistas chineses ou mulás iranianos é um equívoco absurdo. 

Que beneficiou nas últimas décadas a classe trabalhadora americana da dominação imperialista do mundo pela sua classe dominante? Que podem, portanto, esperar as massas dos países que compõem os BRICS se estes conseguirem uma fatia maior do bolo? 

Estas ilusões são a consequência duma total falta de confiança na capacidade da classe trabalhadora poder, com as suas próprias forças, construir esse mundo melhor, um mundo socialista.

O sombrio caminho da Europa

Não deixa de ser irónico que, tendo sido o berço do capitalismo, a Europa, neste momento de crise sistémica, se apresente como o “homem doente” da economia mundial. 

Senão, vejamos: o crescimento económico médio anual desde o início deste século foi de 1,4% na UE-27, 2% nos EUA e 8,3% na China. 

Ainda que débil, os fatores que continuaram a apoiar o crescimento na UE durante este período – a expansão do comércio mundial (em 2019, o comércio internacional representou um máximo de 43% do PIB da UE-27); a energia barata proveniente da Rússia e os baixos gastos militares devido à hegemonia global dos EUA – já passaram à história.   

Há poucos meses, o antigo governado do Banco Central, Mário Draghi, apresentou um relatório à Comissão Europeia escalpelizando as causas do atraso europeu. 

Antes de mais está a já aludida perda de energia barata russa que provoca custos acima dos praticados nos Estados Unidos, de 2 a 3 vezes para a eletricidade industrial e de 4 a 5 pelo gás natural.

Seguidamente, focou o “excesso de regulamentação” da Europa onde, para infelicidade dos seus capitalistas, desde as férias pagas à proteção ambiental, da licença de maternidade à proteção de dados, vai existindo ainda uma “regulamentação” que, fruto da luta dos trabalhadores e das particularidades do período anterior, melhor protege os trabalhadores europeus, comparando com o que sucede nos Estados Unidos ou na China. 

Mas o “modelo social europeu” é agora chamado ao sacrifício para salvar os lucros dos capitalistas da Europa e financiar o seu rearmamento. Finalmente, concedia Draghi, a economia europeia não tem o grau de unificação da China ou dos Estados Unidos.

Para nós, comunistas revolucionários, o projeto de União Europeia sempre foi caracterizado como sendo simultaneamente quimérico e reacionário, porque embora seja possível alcançar alguns acordos, ao menor sinal de crise as várias burguesias europeias recomeçam a luta entre si porque a Europa não é uma nação unificada. 

Esta é a barreira do Estado nacional. Em última instância, a unidade europeia não é possível de ser alcançada e, se o fosse, seria às custas da classe trabalhadora e contra ela. 

A unidade da Europa sob bases capitalistas não é fazível.  Mesmo beneficiando no passado dum longo período de estabilidade, a integração europeia só avançou até um certo ponto. Por detrás dos sorrisos, palavras de circunstância e doses massiva propaganda europeísta, as diferentes classes dominantes com os seus respetivos interesses próprios e rivalidades específicas não desapareceram. 

Isto é o resultado dos dois grandes óbices atuais ao desenvolvimento capitalista: a propriedade privada e o Estado nacional. 

Pelo contrário, em face da previsível vitória russa na Ucrânia, do deslocamento do foco do interesse americano para a área do Indo-Pacífico, a ascensão da China e as guerras comerciais que se avizinham, é até provável que os 27 países da UE comecem a gravitar em direções diferentes. Se a isto somarmos a ascensão da direita populista, então a continuação da União Europeia, tal como a conhecemos não é, de todo, um dado adquirido.

Desde já, porém, a União Europeia confronta-se com a ausência de um mercado bancário e financeiro unificado, com consórcios e empresas de “pequena dimensão” (comparativamente com a escala dos monopólios chineses e americanos) laborando em primeira mão para os seus 27 mercados nacionais europeus, com os seus próprios modelos fiscais e de financiamento, regulamentos e legislações que, em cada país, protegem a respetiva burguesia nacional. 

Os diversos Estados europeus não têm os meios para produzir monopólios com a dimensão e a produtividade necessárias para competir com os gigantes americanos e chineses. Falta-lhes uma centralização em todos os domínios: mercados de capitais, aprovisionamento energético, infraestruturas, investigação e desenvolvimento, orçamento e dívida da UE, mesmo até em política externa. 

Ainda assim, procurando manter o nível de enriquecimento e as taxas de lucro do passado, tentando para isso promover um grau de concentração económica e capacidade de investimento capazes de concorrer com os seus rivais, face ao nível estratosférico de endividamento e a corrida ao rearmamento para o qual se atiraram, aos capitalistas da União Europeia resta proceder a um feroz e persistente ataque às condições de vida dos trabalhadores do continente. 

Portugal: um elo fraco

A economia portuguesa tem acompanhado as tendências do capitalismo (e do capitalismo europeu em particular) nas últimas décadas, mas indo sempre a seu reboque. 

Se durante a década de 70 do ano passado, mesmo com o fim do padrão-ouro, choque petrolífero, crise mundial de 73, revolução e descolonização, a economia portuguesa conseguia crescer 3,9% ao ano; já desde o ano 2000 a taxa de crescimento, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, tem sido de 0,9% ao ano. 

Naturalmente, o crescimento do PIB está dependente dos investimentos em bens duradouros como equipamentos, máquinas, infraestruturas, habitação, etc. Ora, em relação à formação bruta de capital, isto é, ao investimento em percentagem do PIB, verifica-se que uma queda contínua desde os anos 70 até aos nossos dias, ocupando sistematicamente a economia portuguesa, nos últimos vinte anos, os últimos lugares no quadro europeu no que ao investimento diz respeito.

O paulatino menor reinvestimento da riqueza produzida e o menor crescimento económico têm tido visíveis consequências no plano social: o PIB per capita em paridades de poder de compra, face à União europeia, passou dos 83,9% em 2003 para os 80,2% em 2023. Ao invés de nos aproximarmos dos níveis de vida dos países economicamente mais desenvolvidos da Europa, temo-nos vindo a afastar.

O desempenho horrível da economia portuguesa, após a viragem do milénio, pode fazer-nos cair na tentação de responsabilizar a nossa integração europeia e a adesão ao euro pela (longa) estagnação da nossa economia.  

Mas como explicar então que até para a Alemanha, país que se notoriamente se beneficiou da UE e do euro para permanecer como uma das grandes economias exportadoras do mundo com um crónico superavit, o seu crescimento económico também tem sido pífio nas últimas décadas: 0,9% no decénio 2000-2010 e 1,1% entre 2010 e 2020

É certo que a União Europeia não é mais do que um clube de capitalistas que não tem nada em comum com os interesses da classe trabalhadora. Porém, não perdendo de vista o carácter reacionário e pernicioso do “projeto europeu”, estar fora da União Europeia sobre bases capitalistas também nada resolveria: se compararmos com a Sérvia, por exemplo, país europeu que não está na UE, a taxa de crescimento económico de Portugal e da Sérvia andam a par.

É preciso, pois, ir mais fundo, à raiz da questão: o que está subjacente a tudo isto é o capitalismo. 

E a crise do capitalismo, por toda a parte, seja aos governos na Europa ou de países de outros continentes, sejam esses governos de direita ou de esquerda; a todos eles a crise se impõe e agrava nas rivalidades inter-imperialistas, na depredação ambiental e nas alterações climáticas, na austeridade infinita e nos ataques aos trabalhadores. 

Sucede apenas que, pelas razões já aludidas, a crise na Europa está a manifestar-se de modo mais sombrio. A solução para a classe trabalhadora não passa apenas por sair da UE e regressar a um capitalismo nacional supostamente “soberano”. A solução para os trabalhadores é sair do capitalismo.

A austeridade que muitos à esquerda associam às regras da União Europeia não resultam duma escolha moral ou ideológica. Falam em “neoliberalismo”, mas o facto de se aplicarem determinadas políticas económicas não é consequência duma qualquer conversão ideológica, mas uma necessidade material que o capitalismo, nesta fase, impõe. 

Ora num país pequeno, pobre e periférico como Portugal, o efeito disto é exponencialmente dramático.

Tanto no ano 2000 como ainda em 2023, os 40% mais pobres da população portuguesa dispunham apenas de cerca de 19% do rendimento nacional. No mesmo período, mais de 40% da população vivia em risco de pobreza antes de qualquer transferência social. Mesmo após essas transferências, em 2023  20,1% da população vivia em risco de pobreza e exclusão social. O que mudou, de facto? Só a instabilidade e a incerteza: Se em 2000, 19,5% da população não era capaz de fazer face a uma despesa inesperada, em 2023 eram já 30,5%

À longa estagnação económica junta-se-lhe uma latente crise social que se traduziu também na emigração permanente, isto é definitiva, não sazonal ou intermitente de 555 mil trabalhadores portugueses entre ano 2000 e 2022, de acordo com os dados oficiais

Neste contexto é importante frisar que, num dos países mais envelhecidos do mundo com esta sangria emigratória, só foi possível manter o número de população ativa, a rondar os 5,5 milhões tanto em 2004 como em 2024 , graças à vinda de imigrantes para Portugal, sem os quais a economia colapsaria.

Os fluxos migratórios das últimas décadas têm levado aquela parte da população mais jovem, dinâmica, mas também com mais graus de educação.

Estima-se que um em cada quatro jovens licenciados esteja a sair do país. Inversamente, calcula-se que 40% dos imigrantes desempenham funções abaixo das suas qualificações, enquanto para os trabalhadores nascidos em Portugal esse número cai, para uns (ainda assim estonteantes) 27%

Por oposição, Portugal é o país da União Europeia com um maior número de patrões sem instrução ou com o ensino básico: cerca de 44% dos empregadores tem apenas o 9º ano, abaixo da escolaridade obrigatória… temos patrões pouco instruídos (de vistas curtas) e mão-de-obra qualificada que emigra ou que é desperdiçada.

Isto é inevitável numa economia baseada em baixos salários e em atividades que produzem baixo valor acrescentado que nos é imposta pela divisão internacional do trabalho no quadro do capitalismo. 

A isto soma-se um pequeno mercado interno deprimido pela austeridade e uma concorrência feroz nos mercados mundiais. 

Que outra coisa poderia, então, ser o capitalismo português senão uma economia essencialmente rentista, onde alguns grandes grupos económicos dominam como monopólios, controlando e manipulando o mercado, sob proteção do Estado do qual retiram parcerias público-privadas, contratos e ajustes diretos ou até rendas garantidas? 

A economia portuguesa baseia-se progressivamente no turismo que já emprega direta e indiretamente mais de 1 milhão e trabalhadores  e que em 2023 já contribuía para metade do crescimento económico, área por excelência de baixos salários, pouca inovação e reduzido valor acrescentado. 

Junte-se-lhe a construção e o imobiliário (direcionados para a habitação de luxo e também para o turismo) representando 20% do PIB  com a especulação   financeira, com a qual a capitalização bolsista já representa mais de 40% do PIB português, e ficamos com uma imagem, se a um tempo incompleta, por outro lado, suficientemente nítida do carácter parasitário do capitalismo português. 

Tudo isto alavancando um sector bancário resgatado pelos contribuintes durante a crise das dívidas soberanas e que tem aproveitado agora a crise inflacionária para obter lucros recorde.

Do ponto de vista do capitalista, para quê, portanto, investir no desenvolvimento das forças produtivas, na produção de bens e satisfação das necessidades da população quando é muito mais fácil e rápido ganhar dinheiro restaurando um prédio e colocá-lo a render como “alojamento local”? Ou apostar na roleta da bolsa de valores, numa moeda virtual ou num NFT? E, no fim, pegar nos lucros e nas rendas e colocá-los em offshores? 

Atente-se no seguinte: bastaria que o dinheiro que anualmente sai do país para paraísos fiscais fosse reinvestido na economia para que estivéssemos, em termos de investimento, a par com a média europeia, ainda que a média europeia, ela própria, não seja grande coisa.  

Mas, mais uma vez, nada destas escolhas são morais, mas práticas: se existem mercados minguantes, uma crise de sobreprodução latente com uma capacidade industrial instalada laborando já muito abaixo das suas potencialidades… para que irão investir os capitalistas no desenvolvimento das forças produtivas, quando têm turismo prêt-à-porter, a especulação imobiliária ou o casino financeiro à disposição que lhes proporciona mais rapidamente e com mais garantias o retorno do investimento e os lucros que procuram?

Venha o governo que vier, virá apenas para gerir a decadência do capitalismo português e obrigar a classe trabalhadora a pagar pela crise do seu sistema.

Da geringonça à crise do reformismo

Crise é a palavra certa para desrever o Portugal das últimas décadas.  Depois de anos de austeridade e violento “reajuste” exigidos pela Troika (FMI, BCE e UE) o governo das esquerdas, a “Geringonça”, que lhe sobreveio, apesar das condições económicas relativamente estáveis e favoráveis que usufruiu, limitou-se a concessões mínimas.

Malgrado as promessas, muitas das contrarreformas da troika não foram revertidas, como por exemplo os dias de férias roubados ou as alterações feitas à legislação laboral. E apesar do crescimento do salário mínimo (e aqui há que frisar que, em termos reais, estes aumentos dos salários mínimos durante a Geringonça estiveram ao nível do registado durante o governo Sócrates!), os salários médios permaneceram estagnados.

Dado que os reformistas aceitam o capitalismo, são forçados a aceitar as suas regras e limites. 

O fraco crescimento e investimentos na economia portuguesa, a sua fraca especialização e a necessidade de garantir a lucratividade aos capitalistas, implicaria sempre que, independentemente dos seus desejos subjetivos, as concessões aos trabalhadores teriam de ser mínimas, mesmo nesses anos de relativa estabilidade da economia mundial. 

Tal não se deveu, portanto, a uma qualquer “maldade” particular do PS ou duma falta de talento negocial dos seus parceiros de Geringonça, o PCP e o BE: tal deveu-se ao impasse geral do sistema capitalista. 

Na década passada todos os reformistas, duma maneira ou de outra, falharam estrepitosamente porque, confrontados com os limites do seu reformismo, chegada à hora da verdade, todos eles capitularam diante das pressões e dos interesses instalados da classe dominante: 

Syriza na Grécia, Sanders nos Estados Unidos, Podemos em Espanha, Corbyn no Reino Unido… ou a Geringonça em Portugal foram disso exemplos. A crise do capitalismo reflete-se também na crise do reformismo que, incapaz de proporcionar reformas substantivas e perenes, se tem afundado na irrelevância política.

Com efeito, com a pandemia primeiro, a guerra da Ucrânia e o surto inflacionário depois, todas os pequenos benefícios da Geringonça foram reduzidos a pó. Três dados ilustram-no perfeitamente: o preço dos bens alimentares subiu 28% nos últimos 3 anos. Apenas no ano passado o preço das casas subiu 9%. No início deste ano, foi noticiado que em média os tempos de espera por consultas de urgência nos hospitais portugueses ultrapassavam as 9 horas

Nada disto começou com o governo AD ou, sequer, com o governo maioritário do PS. As atuais crises dos salários, da habitação e dos serviços públicos têm raízes mais fundas e nem mesmo os governos da Geringonça, nos quais o PS governou com o apoio do BE e PCP foram capazes de as debelar. 

Se os serviços públicos estão à beira do colapso, foi porque durante anos se cativaram as verbas aprovadas em orçamento de Estado para a Saúde, Educação ou Investimento, que logo depois eram congeladas e depois desviadas para se conseguir o “milagre” da redução da dívida pública. 

Se o custo da compra ou arrendamento da habitação disparou, foi porque durante anos se estimulou a “turistificação” e a especulação imobiliária nas grandes cidades. 

Se o salário não chega ao fim do mês, é porque as atividades de baixo valor acrescentado em que se baseia a economia portuguesa obrigam os capitalistas a espremerem os salários dos trabalhadores para conservarem os seus lucros. E assim, apesar dos vários governos PS e da Geringonça, Portugal continua a ser dos países socialmente mais desiguais da União Europeia.

Como pode, pois, surpreender que, com resultados tão medíocres após anos de governação, esteja a esquerda em crise? 

Nas eleições de 2015, após anos de austeridade da Troika/Passos Coelho, os trabalhadores que já tinham expressado a sua revolta em inúmeras greves e manifestações (contra a TSU, por exemplo), mostraram a sua determinação em acabar com a austeridade e a sua disponibilidade para a luta. 

Nessas eleições, o 1 milhão de votos que o PCP e o Bloco receberam, o melhor resultado da esquerda à esquerda do PS desde os idos anos 70, indicaram uma clara radicalização à esquerda. 

E que fizeram estes partidos que se proclamam “anticapitalistas”? Acaso procuraram construir uma alternativa anticapitalista? Acaso procuraram disputar a hegemonia da esquerda ao PS? Absolutamente não! 

Fortalecidos por uma votação que expressava a raiva social dos anos da troika, canalizaram e diluíram essa revolta para acordos parlamentares, dando a mão ao PS na gestão das desigualdades e da escassez que a anémico capitalismo português e a crise sistémica geral inevitavelmente vão produzir, independentemente dos desejos ou das habilidades negociais dos reformistas ou até da relativa estabilidade económica daqueles anos.

Sem surpresa, todos pagaram um preço elevado pelo seu falhanço, em especial comunistas e bloquistas. 

Na sofreguidão de se apresentarem como partidos “responsáveis” e de poderem demonstrar como as suas políticas reformistas seriam capazes de apresentar resultados, BE e PCP esqueceram-se que, num governo de coligação (e a Geringonça foi uma coligação de apoio ao governo, ainda que sem pastas atribuídas aos sócios menores), é fatal os partidos mais pequenos acabarem engolidos pelo partido maior. 

Ao esbaterem as diferenças entre si, ao darem crédito às supostas políticas de “esquerda” do PS, acabaram por convidar os seus próprios eleitores a dirigirem um voto útil aos socialistas, tal como sucedeu em 2022 quando, contra todas as expectativas, o PS viria a ganhar com a maioria absoluta, concentrando o voto da esquerda como melhor forma de travar uma vitória da direita e a ascensão da direita populista. 

Se para PCP e BE os resultados foram maus em 2022, ainda conseguiram piorá-los em 2024: numa década estes partidos passaram, em conjunto, de 36 para 9 deputados, com o PCP a situar-se em mínimos históricos de 3% e o BE nos 4% dos votos.

Inevitavelmente, a espiral inflacionária, a degradação dos serviços públicos e a crise na habitação criaram um tal desgaste ao governo PS e as necessárias condições políticas para que, perante a sucessão de “casos e casinhos”, escândalos e suspeições, o presidente Marcelo pudesse dissolver o parlamento e abrir caminho para o regresso da direita ao poder, registando o PS o seu pior resultado em eleições gerais desde a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva em 1987. 

Apesar da sua maioria absoluta, o governo Costa foi um gigante com pés de barro. Ao governar sobre um vulcão de raiva e descontentamento, Costa e os seus ministros mostraram-se inseguros e vacilantes a todo o momento. Perante a sucessão de escândalos, que nos “anos de ouro” do capitalismo português não teriam desestabilizado um governo, este desmoronou-se como um castelo de cartas.  

Um giro à direita?

Se toda a esquerda (incluindo-se aqui o PS) se afundou nas últimas eleições legislativas, por contraponto, em apenas 5 anos, a direita ainda que fragmentada passou do seu pior resultado de sempre em eleições legislativas para um dos seus melhores scores eleitorais, com PSD/CDS, Iniciativa Liberal e Chega a ultrapassarem os 50% dos votos.

Numas eleições que registaram das maiores afluências à urna dos últimos anos, dois fenómenos ficaram evidentes:  

Em primeiro lugar, o voto dos mais jovens (entre os jovens que votaram) foi dirigido maioritariamente para os partidos da direita. Face a tudo aquilo que conheceram, isto é, a governação PS com e sem “Geringonça” e o estado dum país que os condena a um futuro sempre adiado ou à emigração, como poderia ser diferente? 

Em segundo lugar, tivemos o crescimento exponencial do Chega. 

O Chega foi, aliás, o único partido da direita que efetivamente cresceu das eleições de 2022 para as legislativas de 2024. Duma eleição para a outra votaram mais 909 mil eleitores e de 2022 para 2024 o Chega conseguiu aumentar a sua votação em 770 mil votos. O partido da direita populista foi o principal beneficiário duma menor abstenção e do voto de protesto. Através duma demagógica denúncia “antissistema” foram capazes de atrair e capitalizar o sentimento de raiva e frustração que existe na sociedade portuguesa. 

Nós sabemos bem que o Chega é um projeto reacionário que, malgrado a retórica, visa defender e perpetuar os grandes interesses instalados, procurando lançar o penúltimo contra o último, deitando mão do preconceito, do discurso racista e securitário, para desviar o foco da justa raiva social dos verdadeiros culpados da crise, os capitalistas e todos os políticos burgueses, para as minorias já propensas à discriminação, fazendo delas bodes-expiatórios. 

Contudo, para muitos duma pequena-burguesia desesperada e até para aqueles setores politicamente mais atrasados da classe trabalhadora esmagados pela crise, Ventura e o Chega são os únicos que se apresentam como uma voz contra o regime – que está efetivamente apodrecido. 

Por contraste, a esquerda (que governou o país durante anos) não apenas aparece naturalmente aos olhos das massas como responsável pelo estado a que chegou o país, como faz gala de se posicionar como a grande defensora dos “valores” e “princípios” do sistema, desta democracia parlamentar burguesa inaugurada pelo golpe do 25 de novembro. 

A título de exemplo, como podem um jovem que ganha o salário mínimo, um trabalhador que mal consegue pagar a renda ou um pensionista obrigado a escolher entre comida e medicamentos, como podem avaliar eles um cartaz como aquele do Livre, para celebrar os 50 anos do 25 de Abril, que lhes pedia “mais cinquenta anos”? 

É isso que queremos, mais 50 anos de atraso, de dificuldades, de desigualdades sociais, de corrupção? 

Pior só mesmo o sistemático discurso do PCP “em defesa da Constituição” do regime. Não que os direitos nela inscritos e que, cada vez menos, nos beneficiam não devam ser estimados e defendidos pelos trabalhadores, mas a Constituição é um pedaço de papel sempre pronto a ser rasgado se a luta ameaçar os privilégios da burguesia, uma cortina de fumo que oculta a verdadeira ditadura do Capital, uma fantasia que assegura a pobres e ricos o mesmo direito legal de viver debaixo da ponte. E, em definitivo, é o esteio legal do apodrecido regime novembrista

O PCP acaba por apresentar-se, portanto, como um defensor deste regime decrépito.

Não cabe dúvidas que existe uma polarização à direita, que o Chega reúne os elementos mais reacionários e racistas, muitos deles abertamente fascistas, da sociedade portuguesa.

Porém, seria um erro não compreender que há um voto de protesto que se materializou no Chega e dar assim a totalidade dos seus eleitores como “perdidos”. 

Na verdade, embora o Chega tenha recebido os votos, não tem a força social que as suas votações sugerem. Pelo contrário. Todos os seus últimos ensaios de mobilização popular foram um absoluto fiasco: não mais de 100 pessoas nas duas manifestações que convocaram em favor da polícia e da ordem. 

Por contraste, só em Lisboa, nos 50 anos do 25 de Abril, estiveram presentes cerca de meio milhão de manifestantes. Esta é a verdadeira relação de forças na sociedade.  

Enfim, muitas vezes o Chega é caracterizado como um partido “fascista”. Embora tenha muitos elementos fascistas nas suas fileiras, embora seja uma força ultrarreacionária, não é correto caracterizá-la como fascista. 

Historicamente o fascismo representa a mobilização da pequena-burguesia ensandecida e do lumpemproletariado com vista ao esmagamento físico do movimento operário, da supressão das suas organizações, partidos e sindicatos. 

Ora nem o Chega tem a força social para isso, nem, neste momento, a burguesia tem sequer utilidade para tal. Os estrategas mais lúcidos do Capital sabem bem qual a verdadeira relação de forças potencial na sociedade e não é do seu interesse arriscar, neste momento, a guerra civil com todos os seus riscos, que é o que a emergência do fascismo significaria.

Tome-se o governo Meloni em Itália: apesar da sua agenda reacionária, não lhe é possível simplesmente abolir a democracia, nem sequer o tentou. 

O governo Meloni tem, na realidade, governado em linha com muitos governos da burguesia dita “liberal” e pró-europeia que, por exemplo, não têm hesitado em apoiar o genocídio em Gaza ou reforçado a repressão do Estado contra os movimentos de solidariedade com o povo palestiniano.

A hipotética futura participação do Chega num governo não será, por isso, o prólogo do fascismo. 

Pelo contrário, será um governo que irá suscitar um profundo ódio social. Caso seja (como seria o mais provável) um governo de coligação, seria ainda bastante instável. A burguesia sabe disso. 

Toda a retórica das “linhas sanitárias” em torno do Chega refletem apenas esse receio, mas, caso não se apresente outra solução governativa, mais cedo ou mais tarde, essas linhas irão cair, como sucedeu com o governo regional dos Açores.

Ao mesmo tempo, a base social do Chega é enormemente heterogénea, como já foi frisado: abrange de racistas e fascistas conscientes, até pequeno burgueses frustrados e assustados, e até elementos confusos e descontentes da classe trabalhadora, que não encontram outra alternativa para exprimir a sua raiva. 

Essa capacidade de atrair setores díspares deve-se à demagogia do Ventura, que promete tudo a todos a toda a hora. Essa demagogia que agora impulsiona o Chega eleitoralmente tornar-se-á, quer queiram quer não, no seu calcanhar de Aquiles. 

Quando o Ventura se aproximar ao poder, irá deixando cair o seu disfarce demagógico para mostrar a sua verdadeira natureza: a de um político capitalista reacionário. 

Paralelamente, a sucessão de escândalos recentes em que o Chega já se tem visto envolvido não irá terminar. A sua ascensão ao poder, ou mesmo só às suas antecâmaras irão multiplicar os seus casos de corrupção, também eles serão julgados pela população com a sentença do “são todos iguais”. 

A ampla base social do Chega irá, portanto, desfazer-se. E esse sentimento de raiva social que tem alimentado o Chega procurará novas formas de expressão. Isto terá consequências explosivas e potencialmente revolucionárias.

O breve governo de Montenegro 

Se a maioria absoluta de Costa o tornou num gigante com pés de barro, o governo minoritário de Montenegro, sujeito a uma aritmética parlamentar complexa, foi um anão que resistiu no poder menos de um ano. 

Mais ainda, se o PS, devido à sua história e à sua base social tem, pelo menos, de ocultar as suas políticas capitalistas sob um verniz “progressista”, a AD governa abertamente ao serviço da burguesia portuguesa, à qual os políticos da direita estão unidos por milhares de fios, como o caso Spinumviva claramente revelou. 

A súbita queda de Montenegro explica-se pela sua extrema fragilidade, aumentada pelo clima de descontentamento que existe na sociedade e o nervosismo dos principais partidos e instituições, que são cientes da sua rápida perda de legitimidade. 

Qual é a principal lição da queda do governo AD? A dificuldade que a burguesia tem tido para formar governos fortes, numa fase em que precisa desesperadamente deles para impor a sua agenda de contrarreformas e ataques. 

A legitimidade e autoridade social dos partidos burgueses, e do regime novembrista no seu conjunto, tem-se erodido drasticamente. É neste contexto que a burguesia é também chamada, pelos seus parceiros na UE, a aplicar um programa de aumento da despesa militar, de ataques aos direitos laborais e democráticos dos trabalhadores e de cortes no gasto social, um programa que lhe é imposto pela conjuntura política e económica internacional. 

Isto é uma receita para a instabilidade e a luta de classes. 

Todas as tentativas de conseguir um equilíbrio económico gerarão instabilidade política e vice-versa, os esforços por apaziguar a luta de classes só agravarão a crise do sistema. Este é o nó górdio que a burguesia é incapaz de resolver, em particular em países atrasados como Portugal.

Nas eleições de Maio, previsivelmente nenhum partido terá a maioria absoluta e, com pequenas variações, é bem possível que o novo parlamento não seja muito diferente do cessante.  

Em cima da mesa estarão ou um governo minoritário (seja do PSD ou PS), uma coligação entre estes dois partidos do “centrão, ou um governo de direita que inclua o Chega. 

Poderá haver surpresas, claro! Mas seja qual for a solução governativa que saia das próximas eleições, podemos estar certos de que não terá soluções para os problemas que afligem a classe trabalhadora, a juventude e o grande conjunto da população. Pelo contrário, o próximo governo será chamado a atacar a classe trabalhadora.

Os resultados eleitorais não bastam para definir, contudo, a situação. 

A luta de classes expressa-se de muitos modos, não apenas e nem principalmente no plano eleitoral. Um trabalhador que, por exemplo, hoje vote Chega poderá amanhã participar numa greve contra os ataques do patrão.  

Não apenas não existe uma força que genuinamente possa dar uma expressão de classe à crise atual, como a maioria daqueles setores mais explorados e oprimidos da classe trabalhadora nem sequer têm direito a voto, nomeadamente os trabalhadores imigrantes. 

Estima-se que exista, atualmente, mais de um milhão de imigrantes em Portugal.

Na antecâmara duma explosão da luta de classes

Vimos como nos últimos anos se têm registado enormes viragens à esquerda e à direita. Esta enorme instabilidade não vai desaparecer, pelo contrário, todos os dados disponíveis apontam para um aprofundamento da crise capitalista, em especial na Europa. 

As perspetivas são uma guia para a ação, não são um oráculo. Não cabe neste documento pressagiar os modos e os ritmos da crise capitalista, em especial do declínio europeu, contudo é visível que isto está já a ter um impacto na consciência de milhões, tal como só nas últimas semanas aqui na Europa ficou expresso, por exemplo, nas massivas manifestações na Sérvia ou na recente greve geral grega.

Que sucederá quando o peso das tarifas de Trump e o agravar do protecionismo se fizerem sentir? Ou quando a China, em face da crise de sobreprodução, exportar as suas dificuldades para o exterior abarrotando ainda mais agressivamente o mercado mundial com os seus produtos baratos e de maior qualidade? Ou quando os custos do anunciado rearmamento europeu forem cobrados à classe trabalhadora? 

E ainda que sustentada pelo turismo, imobiliário e especulação, durante quanto tempo a economia portuguesa poderá resistir à anemia europeia, com a crise a larvar nas principais economias do continente, à cabeça das quais está a alemã, que vai já para o terceiro ano consecutivo de recessão?

A atual polarização à direita, mais cedo que tarde, dará lugar a uma nova e mais acentuada polarização à esquerda, mesmo que agora esse processo já em curso não seja percetível ao não existir uma referência que o possa expressar, mas nem a timidez ou cobardia dos dirigentes reformistas será capaz de impedi-lo. 

Na realidade, a credibilidade dos reformistas bateu no fundo e a sua autoridade junto das massas tem-se reduzido bastante. Sintoma disso é a taxa de sindicalização que tem caído a pique desde os anos 70. Isso tem sido tanto ou mais o resultado de décadas dum sindicalismo, burocratizado, rotineiro, reformista, do que as alterações registadas no mundo do trabalho. 

Como resultado, camadas inteiras da nova geração de jovens trabalhadores envolvidos em empregos precários, como trabalhadores de call centers e similares, bem como a massa de trabalhadores imigrantes sem direitos e sem organização, pouco mais são do que matéria-prima para exploração. E, contudo, quando no pico inflacionário de 2023 a inflação abocanhava os salários dos trabalhadores, estes lançavam-se numa das maiores vagas grevistas das últimas décadas.

Temos visto ainda nos últimos anos lutas sociais importantes: pela habitação, contra as alterações climáticas, contra o genocídio em Gaza, pela Vida Justa, contra o racismo e a violência policial, em solidariedade com os imigrantes, nas marchas do 8M e do Orgulho LGBT. 

Uma importante mobilização foi ainda a da celebração dos 50 anos do 25 de Abril que reuniu cerca de meio milhão só em Lisboa, num contexto em que o Chega acabara de eleger 50 deputados. 

Um problema que todas estas lutas têm tido, incluindo as sindicais, é o seu grau de atomização e isolamento que permite ao governo e aos patrões mais facilmente derrotá-las.  

Mas o processo de radicalização irá continuar a aprofundar-se. Isso abrirá no futuro grandes possibilidades para o trabalho dos comunistas nos sindicatos e nos locais de trabalho. 

Nós, porém, agora e neste momento nem temos ainda a força para fazê-lo, nem as condições objetivas para que possa ser feito estão já plenamente amadurecidas. 

A luta para regenerar os sindicatos e as organizações da classe trabalhadora exige uma luta séria contra o reformismo. 

Nós não somos contra as reformas, mas estas por si só não bastam pois, tal como temos visto, nenhuma reforma poderá adquirir um caráter duradouro a menos que esteja ligada ao derrube da ordem burguesa. De resto, a melhor forma de conquistar reformas é através da luta revolucionária! O problema dos reformistas na nossa época, devido aos seus métodos e ao seu programa, é que não só são absolutamente incapazes de conquistar qualquer reforma, como não conseguem, de facto, defender as conquistas do passado.

Nas últimas décadas, face ao vazio de ideias e perspetivas dos reformistas, a pós-modernidade com o seu arsenal de “política identitárias” tomou, em boa medida, conta do discurso da esquerda.

Nós, comunistas revolucionários, opomo-nos a todas as formas de opressão e discriminação, muitas delas anteriores ao capitalismo, mas que os capitalistas delas ainda hoje se servem para dividir e melhor explorar a classe trabalhadora. 

Porém, as “políticas identitárias” ao se basearem na defesa de grupos específicos, avançando que uma luta específica só pode ser feita por quem sofre determinada opressão, entendendo as lutas como separadas, atomizadas e ignorando as divisões de classe, apenas têm contribuído para dividir a classe trabalhadora, desviando o foco da irreconciliável oposição entre proletariado e burguesia para o domínio das “guerras culturais” que, por nada custarem à burguesia, são usadas tanto pelos seus elementos liberais como pelos setores mais reacionários como cortinas de fumo.

Nós, comunistas revolucionários, mantemo-nos firmemente no terreno da luta de classes e defendemos a unidade da classe trabalhadora acima de todas as divisões de raça, cor, gênero, língua ou religião, sem perder de vista que a classe trabalhadora é heterogénea: é mulher, negra, gay, trans ou imigrante. Estaremos sempre do lado dos oprimidos contra os opressores, mas fá-lo-emos sempre também desde um ponto de vista organizativo, tático e programático de classe.

E porquê da classe trabalhadora? 

Não endeusamos os trabalhadores: mas com todas as suas limitações e preconceitos, com toda a apatia e conservadorismo que podem manifestar em períodos ditos “normais”, em épocas de estabilidade, a verdade, porém, é que só os trabalhadores pelo seu número, pelo seu peso, pela sua condição, pela posição que ocupam nas relações sociais de produção moderna poderão derrubar o capitalismo e criar uma nova organização económica, social e política na sociedade, aliando-se e liderando outras classes e grupos sociais oprimidos, rumo à emancipação da humanidade dos grilhões da propriedade privada e do Estado nacional.  

Nos últimos anos não têm faltado vozes opinando sobre o suposto fim da classe trabalhadora ou o seu suposto aburguesamento. Amiúde evocam a desindustrialização no Ocidente, o pós-fordismo ou a nova era digital. 

É verdade que a deslocalização de indústrias reduziu o número de trabalhadores industriais na Europa e Estados Unidos, porém, o seu número explodiu em países como a China, Índia ou Indonésia. 

Mesmo no Ocidente nunca houve uma massa tão grande de assalariados como nos nossos dias. Longe de se terem os trabalhadores “aburguesado”, o que temos assistido nas últimas décadas é à proletarização de crescentes camadas pequeno-burguesas e até, à perda de rendimento e estatuto da chamada “aristocracia operária”. 

A terciarização e digitalização da economia, embora tenham conduzido a mudanças que não devemos ignorar, não trouxeram o fim do trabalho assalariado, muito pelo contrário.

Em 1848 Marx e Engels nas páginas de O Manifesto do Partido Comunista descreviam assim a alienação operária pelo trabalho: “O trabalho dos proletários perdeu, com a extensão da maquinaria e a divisão do trabalho, todo o carácter autónomo e, portanto, todos os atrativos para os operários. Ele torna-se um mero acessório da máquina ao qual se exige apenas o manejo mais simples, mais monótono, mais fácil de aprender.”

Ora, quase duzentos anos depois, num recente e banal inquérito do Instituto Nacional de Estatísticas, podemos ler como, em pleno século XXI, apenas 13% da população empregada indicou “gastar, pelo menos, metade do tempo de trabalho a ler manuais ou documentos técnicos” necessários ou úteis à realização do trabalho. Mais de metade respondeu que desempenhava tarefas que não exigiam de todo, ou na maior parte do tempo de trabalho, qualquer tarefa cognitiva relacionada com cálculo (75%) ou leitura (64%). Simultaneamente, 60% dos respondentes indicaram que o seu trabalho envolve “sempre, quase sempre ou muitas vezes tarefas repetitivas”.

A classe trabalhadora não desapareceu e, no próximo período, ela irá colocar-se em movimento. Não esqueçamos nunca que nenhuma lâmpada acende, nenhuma roda gira e nenhum telefone toca sem a gentil permissão da classe trabalhadora. Esse é um poder colossal. 

E mesmo assim é um poder apenas potencial. Para que esse poder potencial se torne realidade, é necessário algo mais. E esse algo é a organização.

Esta é uma verdade tão atual e atuante hoje como nos tempos de Marx ou Lenine. 

A classe operária sem organização é apenas carne para canhão, porém, ela não chega ao mesmo tempo e automaticamente a conclusões revolucionárias. Pelo contrário, passa por toda uma série de etapas e mudanças constantes, reflexo dos fluxos e refluxos da luta de classes. Se assim não fosse, a nossa tarefa seria fácil. Mas não é assim que a História se desenvolve.  

Devemos, contudo, ter sentido das proporções e consciência das nossas próprias forças. Ao pôr-se em movimento, a classe trabalhadora procurará sempre, em primeira instância, as soluções aparentemente mais indolores, tendendo ao reformismo e até às suas organizações tradicionais. 

Dado o seu descrédito atual isso implicará que nelas ocorram profundas alterações. Pode também suceder que, no calor da luta, surjam novas formas de organização de massas, sejam sindicatos, partidos ou outras. Sejam os caminhos que a classe tome, devemos estabelecer um diálogo com a classe trabalhadora para que por ela sejamos vistos, não como elementos estranhos, mas como camaradas na luta contra um inimigo comum – o Capital. 

Nas palavras de O Manifesto, os comunistas “em todos estes movimentos põem em relevo a questão da propriedade, seja qual for a forma mais ou menos desenvolvida que ela possa ter assumido, como a questão fundamental do movimento”.

Não existe uma regra única para estabelecer as táticas para chegar às massas, que são determinadas por condições concretas. 

Esta não é uma questão de princípios, mas sim uma questão prática. Marx e Lenine sempre tiveram uma atitude flexível em relação às questões táticas. 

Devemos também encontrar formas e meios para ganhar uma audiência entre a massa de trabalhadores que permaneça sob a influência do reformismo, porque serão os grandes eventos, que irão produzir alterações súbitas e dramáticas na consciência da classe trabalhadora. 

Lenine costumava dizer que há décadas que passam como dias e há dias que são como décadas. O desenvolvimento da consciência da classe é elástico, dar-se-á por saltos, e cabe-nos a nós termos a força e a autoridade necessárias para que, quando chegue o momento, possamos proporcionar à classe uma alternativa e um rumo.

Os próximos anos serão tumultuosos e, pelo facto de não existir duma alternativa revolucionária de massas, iremos assistir a momentos de ascenso e de refluxo na luta de classes, a guinadas ora para a esquerda, ora para a direita, à medida que as massas busquem uma solução para os seus problemas candentes e sejam forçadas a duras aprendizagens até que o embate entre as classes se revele decisivo e com um desfecho.

 Temos, por isso, algum tempo, mas não todo o tempo do mundo: na sua senilidade, o capitalismo com o seu lastro de guerras, depredação ambiental e sobre-exploração ameaça arrastar a humanidade para a barbárie. 

A tarefa mais urgente que temos pela frente é a construção dum primeiro núcleo de quadros comunistas, capaz de recrutar e formar uma segunda vaga de ativistas e, assim, começar a lançar os alicerces do partido revolucionário de massas. Somos ainda um grupo pequeno, mas não estamos sós: connosco, por todo o mundo, estão milhares de comunistas organizados na Internacional Comunista Revolucionária porque não é possível construir o “socialismo num só país” e a superação do capitalismo só será possível com o concurso e união da classe operária internacional.

Há pouco mais de trinta anos o estalinismo soçobrava e, com esse colapso, a burguesia proclamou o seu triunfo e o fim da História. 

Hoje, porém, há uma nova geração de jovens trabalhadores que ainda tem de fazer a sua plena entrada no palco da luta de classes; uma geração que está confrontada não com a crise duma versão burocratizada do comunismo, mas com a crise do capitalismo.  Há já um sector, pequeno ainda, que se radicalizou e tem chegado às conclusões mais avançadas; um sector que aguarda pelas nossas ideias e organização. 

Não podemos perder de vista que a classe trabalhadora não chega toda, ao mesmo tempo, às mesmas conclusões. Com as nossas forças, na atual situação, é absolutamente crítico ganhar e organizar no CCR esse sector de vanguarda que se está a formar, sob efeito da crise do capitalismo e da bancarrota dos reformistas. Se ganharmos a maioria desse sector, seremos mais tarde capazes de ganhar o conjunto da classe quando os grandes acontecimentos se sucederem. O vento sopra em nosso favor e temos pela frente a mais exaltante das tarefas: fazer a revolução no nosso tempo de vida!

Viva o Coletivo Comunista Revolucionário!

Viva a Internacional Comunista Revolucionária!

Proletários de todos os países, uni-vos!

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