No passado dia 7/10, a Zona Franca nos Anjos foi despejada, após mais de uma década de atividade. É o último encerramento e despejo unilateral de um espaço em Lisboa que organizava atividades numa lógica comunitária, e não do turismo e do consumo enquanto simples negócio – a par de tantos outros nos últimos anos.
De facto, na última década e meia, talvez em parte produto do refluxo dos participados movimentos anti-troika, proliferava um movimento associativo em Lisboa, uma Lisboa com o seu peso na vida da cidade, e que resistia a reger a vida fora do trabalho (ou mesmo a vida em geral) numa lógica do lucro. Esta tendência tem-se expressado à volta de Arroios, do eixo da Almirante Reis, desde associações populares antigas a manter novos membros, a cultura “alternativa” e independente, a certos movimentos e lutas, e mesmo numa atmosfera resistente que existia na rua em geral, até em bares, cafés ou estabelecimentos comerciais – mas que têm vindo a fechar. Trata-se de um certo eixo de resistência, mesmo a muito pequena escala, com uma oferta alternativa de consumo, de lazer, de arte, de formas de apoio social.
O que quer que se possa dizer destes espaços – sobretudo visando aqui as associações – da crítica às suas limitações ou imperfeições políticas, de quem frequentava e geria ou não, uma sensação aparece como inexorável: a de que esta Lisboa parece ter acabado enquanto tal e enquanto o que foi. Passamos a elaborar uma perspetiva destes acontecimentos por parte de quem viveu no bairro dos Anjos, situado neste nexo, durante estes anos. Pelo lado institucional, importa exemplificar o processo de renovação Intendente e arredores. A Junta de Freguesia de Arroios e a Câmara de Lisboa pareciam prometer e trabalhar para uma reabilitação social nesta zona, que resultasse numa fruição cultural para todos e em mais coesão social, tendo a Câmara inclusive mudado a sua sede para o Largo do Intendente, anteriormente uma das mais problemáticas zonas do centro de Lisboa. Importante nesse processo seria o apoio à LARGO Residências, que lá se estabeleceu e desenvolveu diversas atividades e iniciativas culturais; tanto contaria com o apoio do Estado pelas ditas instituições, como apoiava ela mesma associações e pequenos negócios próximos, bem como desenvolvia a sua atividade autónoma de residências artísticas (inclusive internacionais), o “café do Largo” (que empregava gente do bairro), e também nos dois sentidos, autónomo e institucional, o festival anual Bairro Intendente Em Festa, que chegou a contar com inúmeros nomes conhecidos da música de diversos géneros desde o hip hop até ao jazz e ao rock, entre uma série de outras ofertas artísticas e culturais, tais como exposições, performances, oficinas, etc. (entretanto alarga-se a outros locais e diversifica-se mudando de nome).
Hoje e desde há três anos, no entanto, o Largo do Intendente é uma praceta de chão bem pavimentado com um pequeno jardim da Joana Vasconcelos em forma de chave de fendas ao centro, agora com os arbustos cortados, e em que já não há LARGO, nem o café “O das Joanas” (onde também não se tinha de fazer uma hipoteca por duas imperiais e uma tosta), nem Sport Clube Intendente, e em breve nem a Casa Independente, a última miragem desta promessa social e cultural. De facto, ao longo dos anos, esta última já ia emblemática e notoriamente passando cada vez mais de projecto de maior orientação social e comunitária a espaço noturno cool com galeria e uma grande fila de boémios à porta. De resto, por lá, ao invés de espaços para os lisboetas, hotéis e restauração gourmet; em vez de casas e projetos culturais, uns poucos negócios comerciais mais orientados para o turismo. Nem o bar de cocktails na (agora) malfadada rua do Benformoso, um pouco abaixo do largo, aguentou a pressão gentrificante.
Do outro lado e um pouco acima do Largo do Intendente, a associação Sirigaita resiste, mas está em processo de despejo. Antes da atual gestão (que mudou no final de 2018), tinha sido local de organização de movimentos sociais como os Precários Inflexíveis e com uma livraria rica e diversa, com tanto literatura de esquerda de interesse como geral (Mob). Hoje é o espaço onde o CCR “começou” e onde ainda reúne, um espaço plural que acolhe vários coletivos e atividades, tanto militantes e de discussão e organização política, como culturais (concertos, bar de socixs, sessões de cinema, etc.).
A Zona Franca tinha sido aliás mais um bom exemplo de como uma associação podia reunir tanto lazer e cultura como política no mesmo espaço, sem estar organizacionalmente submetida a um qualquer imperativo autoritário, do lucro ou institucional. Tanto lá havia gente interessada em fazer refeições veganas acessíveis como participar ativamente em movimentos sociais; tanto tinha jam sessions, espaço para um copo de vinho e um jogo de jenga, como ciclos de conversas políticas, debates e participação ativa em vários movimentos sociais, inclusive no da habitação, e junto de outros espaços e associações. Estes dois espaços já trazem o olhar para o associativismo neste local para um ponto de vista mais contracultural e politizado e com uma certa promessa revolucionária – a “Comuna de Arroios”, um título usado às vezes entre amigos, jocoso e meio irónico, mas com um certo peso verdadeiro no que se propunha e se vivia (termo até documentado no arquivo da Ephemera). A Comuna fazia-se de várias associações e movimentos sociais, e no seu apogeu, em determinados momentos prenhes de uma energia e potencial revolucionários, tais como: o desfile e manifestação ao longo da Almirante Reis Rock in Riot em 2018, que juntou uns dois milhares de pessoas e várias entidades e artistas numa marcha ou festa-manifestação pelo direito à cidade; a cantina social no RDA69, sobretudo quando esta foi gratuita no confinamento, ou a atividade e resistência da Seara – uma ocupação de uma antiga creche, inclusive para dar habitação a gente sem abrigo, onde se estava a conseguir uma organização tanto solidária como igualitária do dia-a-dia. Tendo os ocupantes desta última notificado as autoridades, ao contrário do que aconteceria numa já habitual e simples repressão por parte do Estado das ocupações, esta seria expulsa por seguranças privados contratados pelo proprietário, de forma ilegal e especialmente violenta nas ameaças e ações cometidas no local, inclusive e segundo testemunhos, com armas de fogo. A polícia assistiu a este acontecimento barrando coercivamente a entrada do edifício, sendo que no entanto a ação da empresa de segurança foi condenada em tribunal.
Este movimento e este momento social no coração de Lisboa vem então, aparentemente, sofrendo uma erosão e repressão tão gradual e tão rápida quanto o seu surgimento na passada década.
Mesmo esquecendo o ativismo ou a fruição da cultura mais diurna: para quem passa uma noite em Lisboa e deseja estar num local onde não pague caro e se sinta num ambiente acolhedor, e acolhedor no sentido em que pode socializar, conhecer novas pessoas e integrar-se, a pergunta acaba por se impor – então agora onde vamos? Isto fechou, aquilo está cheio de turistas, naqueloutro local cobram os olhos da cara para entrar, esse é muito cool para mim, ou muito comercial…tal questão pode a alguns parecer inconsequente. Mas uma cidade sem espaços de convívio, que tenham espaço para pessoas locais, com diferentes interesses, de diferentes classes e origens, é uma cidade submetida a uma lógica do lucro, de segregação, de reverberação de ecos de redes sociais e de isolamento político crescente. Neste sentido, podemos constatar que por mais espaços resistentes que possam existir num determinado local, face à repressão e às forças implacáveis do mercado, o contágio e o enraizamento não são dados apenas por essa presença. Para fazer face ao capital que sobe as rendas e despeja, que despreza a cultura e a força à marginalidade quando ela é central, deixando-nos sem tempo e sem recuperação autónoma do nosso tempo, e que reprime até formas autónomas de apoio social, a resistência terá de ser construída sobre uma base que seja capaz de se alargar e fortalecer tanto em números e gente como na articulação da frente política.
Devemos defender os espaços que ainda restam. A luta da Sirigaita, que se recusou a entregar as chaves e travou uma batalha legal e política que ainda continua, é um exemplo do caminho a seguir. A melhor forma de garantir a vitória é envolvendo a vizinhança e fazendo uma frente de todas as associações em risco, formando um movimento de massas pelo direito à cultura na cidade, que vá além de tal ou qual espaço concreto. Neste sentido, o caderno de reivindicações das Coletividades em Luta é um ótimo ponto de partida.
A luta contra a especulação não é só pelo direito à casa, a termos um teto sobre as nossas cabeças. É também pelo direito à cultura, ao lazer, à organização e à militância, que também requerem espaços físicos e que são alvejados pelos capitalistas. Na última análise, o verdadeiro “direito à cidade” só poderá ser garantido quando tirarmos a riqueza das mãos dos grandes proprietários, colocando o espaço urbano ao serviço da maioria – ao serviço da classe trabalhadora.
Coletivo Comunista Revolucionário Comunistas Revolucionários de Portugal