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Defender todos os nossos direitos ou defender a Constituição?  

As recentes eleições legislativas criaram o parlamento mais desequilibrado à direita da história da república novembrista. Dispondo de mais de dois terços dos assentos parlamentares, está aberta a possibilidade para uma revisão constitucional promovida pelos partidos da direita. 

E, embora Montenegro tenha afastado (para já) essa putativa revisão como prioritária, a verdade é que tanto a Iniciativa Liberal como o Chega têm a possibilidade de iniciar um processo de revisão constitucional e que, confrontado com tais propostas, não é certo que o PSD as chumbasse ou que não respondesse com a sua própria proposta de revisão constitucional. 

Mas o que pretendem esses partidos? A Iniciativa Liberal já em 2022 apresentou uma proposta de revisão que seria interrompida pelo fim da legislatura. Nessa proposta a IL queria uma Constituição “com mais liberdade” – um eufemismo para reforçar no texto constitucional o peso dos privados na Saúde e Educação, ou colocar o “estado a “estimular a construção privada” para resolver o problema da Habitação”. Em cima da mesa esteve (e estará também) a remoção da expressão “abrir caminho para uma sociedade socialista” do famoso preambulo.   

Tudo isto pode parecer um tanto ou quanto abstrato… e na verdade assim o é! Independentemente do que está escrito na Constituição, a iniciativa privada nunca deixou de estar presente nas esferas da Saúde ou da Educação, nem o Estado (burguês) alguma vez deixou de estimular a “construção privada” – relembre-se, aliás, como recentemente o Tribunal Constitucional chumbou uma proposta de referendo local em Lisboa para acabar com a praga do Alojamento Local.  

E aos promotores do referendo nem sequer lhes valeu o artigo 65 da Constituição onde se afirma: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” 

Não pode, porém, surpreender ninguém que essa palavras, chocando de frente com os interesses e negócios, acabem silenciadas pelo direito à sacrossanta propriedade privada, garantida pelo artigo 62. E também pelos tribunais, pelas forças policiais, por legislação diversa e variada e por todos os governos. 

Quanto ao Chega, não desdenhando nenhuma das principais propostas dos liberais, não se vai deixar enredar por bizantinices: a revisão constitucional servir-lhe-á para fazer propaganda em torno das propostas da prisão perpétua e do combate á corrupção.  

Provavelmente, a razão por que Montenegro veio a terreiro clamar que “não é prioridade para o governo”, será por perceber como o Chega iria explorar o “filão” da revisão constitucional. E sabe também que para continuar a privatizar em parcelas o SNS, para financiar o ensino particular, ou para alterar a lei da greve não é necessária uma revisão constitucional 

Devemos lutar pela Constituição? 

Não! Devemos lutar pelos direitos democráticos da classe trabalhadora. Esses direitos não foram outorgados por nenhuma Constituição: foram conquistados pela luta dos trabalhadores. E só a mobilização consciente e a luta dos trabalhadores podem garantir a sua defesa. 

Naturalmente que nos devemos opor a qualquer revisão constitucional que atente ou diminua esses direitos, mesmo se apenas de um ponto de vista formal. O voto contra essas propostas é mais do que justificado! Contudo, isso não significa que devemos criar qualquer tipo de ilusões sobre a natureza da Constituição e do Estado como, precisamente, o fazem o PCP e o Bloco. De facto, a esquerda parlamentar esforça-se ao máximo para ocultar a natureza classista do Estado e da sua Lei máxima, a Constituição. 

Ainda durante a recente campanha eleitoral o Bloco de Esquerda proclamava que “a Consituição é um arma conta a direita”. Na verdade, desde o seu primeiro dia, a Constituição foi uma arma contra a esquerda e contra a classe trabalhadora.  

Tendo sido aprovada a 2 de Abril de 1976, a Consituição não consagrou as conquistas de Abril, mas a derrota de Novembro.  

Ela foi aprovada como uma cortina de fumo destinada a iludir os trabalhadores com lindas e melífluas palavras como “abrir caminho para a sociedade socialista”, “socializar os meios de produção e a riqueza” ou a “apropriação coletiva dos principais meios de produção”, “empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes”, sobre o “exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras” ou a irreversibilidade” das nacionalizações e o dever de “realizar a reforma agrária”! 

O texto constitucional original tinha formulações muito radicais, mas elas não passavam dum embuste, que pretendiam iludir os trabalhadores sobre a verdadeira contrarrevolução que já estava em curso, desde o golpe do 25 de novembro. Todos esses belos artigos “socialistas” de nada serviram para deter a destruição, às mãos dos mesmos que os aprovaram, da reforma agrária, ou impedir a reversão das nacionalizações e a entrega aos seus antigos donos , muito menos o estrangulamento dos incipientes órgãos de poder operário e popular nascidos no calor da revolução. 

A Constituição de 76 consagrou a democracia burguesa que matou a democracia nos quartéis, nas fábricas, nos bairros populares. Cabe, aliás, lembrar que quando a classe trabalhadora desafiou a ordem burguesa e tocou os céus, era a Constituição de 1933, a Constituição da ditadura, que continuava, formalmente, em vigor.  E, todavia, nunca fomos tão livres com aquando do PREC! 

Isto deveria ser quanto bastasse para que a esquerda parlamentar compreendesse o carácter formal e até mesmo o papel bastante irrelevante que a Constituição joga na luta de classes. Porém, toda a esquerda parlamentar vive obcecada para as formalidades institucionais, para o jogo parlamentar, para a ilusão que as decisões são aí realmente tomadas e que a sua opinião, o seu voto, efetivamente contam e decidem! 

Quando os reformistas de esquerda, todos somados, nem uma dúzia de lugares têm no parlamento, é caso para dizer que a tragédia descambou numa farsa! Mas uma farsa com um propósito: os apelos à “unidade da esquerda” e à “convergência dos democratas” em defesa da Constituição são apenas mais da mesma colaboração de classes que conduziu o PCP e o Bloco ao abismo. 

Enquanto Ventura fará da revisão constitucional um expediente de propaganda contra a corrupção e a “bandalheira” dum sistema apodrecido (e o regime está, de facto, apodrecido), a esquerda parlamentar irá posicionar-se, uma vez mais, como a defensora da situação e do status quo, defendendo direitos abstratos sem qualquer relação concreta com a vida dos trabalhadores, diluindo a oposição ao governo e aos seus ataques contra a classe trabalhadora numa “ampla frente” em defesa duma Constituição que não vale o papel onde se encontra escrita.  

Uma Constituição que é, enfim, sistemática e convenientemente ignorada pela própria classe dominante sempre que o seu texto minimamente interfira com os seus projetos e as suas políticas. Isto acontece porque, na realidade, a única força que se pode opor à burguesia é a organização independente da classe trabalhadora.  

Esta é a tarefa dos comunistas que defendem os direitos democráticos na medida em que eles facilitam a luta dos trabalhadores contra a burguesia, o Estado e a ordem constitucional. 

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