Os recentes ataques de grupos neonazis contra imigrantes, ativistas sociais e voluntários e até contra atores têm gerado um alarme justificado nas fileiras da esquerda e do movimento operário. Nos últimos meses aconteceram numerosas mobilizações de repúdio contra estas agressões e o movimento antifascista está a desenvolver-se vigorosamente. Há só uns dias, o Estado burguês irrompeu no cenário ao ilegalizar um pequeno grupo armado neonazi. Este contexto torna ainda mais importante o esclarecimento político do movimento sobre a natureza do fascismo e sobre como combatê-lo.
O quê é o fascismo?
O fascismo é um movimento contrarrevolucionário de massas composto principalmente pelo lumpemproletariado e pela pequena burguesia enfurecida. Organizado em grupos de choque armados, é utilizado como aríete para esmagar e atomizar a classe trabalhadora e estabelecer um Estado totalitário, no qual a burguesia entrega o poder do Estado ao partido fascista. Trotsky explica:
“[A burguesia] é compelida a esmagar os operários com a ajuda da violência física. Mas é impossível acabar com o descontentamento de operários e camponeses somente através da polícia. […] Por isso, o grande capital é obrigado a criar grupos armados, especialmente treinados para atacar os operários, como certas raças de cachorros são treinadas para atacar a caça. A função histórica do fascismo é esmagar a classe operária, destruir suas organizações, sufocar a liberdade política, quando os capitalistas se sentem incapazes de dirigir e dominar com a ajuda da maquinaria democrática.”
Claramente, esta é uma opção muito arriscada, pois aplica os métodos da guerra civil à repressão do proletariado. Além disso, implica a passagem do poder político a uma burocracia fascista fanática e volúvel. Como Trotsky explicou, a burguesia só recorrerá ao fascismo em condições extremas. Hoje para a burguesia os riscos de enveredar por este caminho são ainda maiores do que eram nos anos 1930, porque a base social clássica do fascismo, a pequena burguesia, tem-se estreitado consideravelmente. Setores outrora privilegiados, como os médicos, professores ou funcionários, hoje estão muito mais próximos à classe trabalhadora, enquanto a pequena propriedade urbana e rural, dominante há cem anos em países como Portugal, tem sido engolida pelos grandes monopólios.
O risco da contrarrevolução fascista não existe em Portugal neste momento. O Chega é frequentemente definido como uma força fascista cujo ascenso auguraria o esmagamento da democracia burguesa. Ora, André Ventura é um reacionário, mas ele nem quer nem pode destruir a democracia: a atual correlação de forças não lho permite. Basta olhar para o caso dos seus irmãos políticos na Itália, que ao chegarem ao poder desmascararam-se como mais uma formação burguesa de direita, se calhar com um pendor mais demagógico.
Dito isto, a burguesia sempre conserva, caso se tornarem úteis, pequenos grupos fascistas, protegidos e aliciados pela polícia, à que estão ligados por mil fios. Basta dizer que o fundador do bando neonazi Armilar Lusitano era chefe da PSP! Estes grupelhos são úteis como um reforço à ação da polícia, permitindo-lhe contornar os (já bastante maleáveis) direitos democráticos conquistados pela classe operária e garantidos pela lei, e aplicar uma maior “potência de fogo” da que a polícia dispõe. Contribuem assim para intimidar e reprimir os movimentos sociais e a esquerda e os bodes expiatórios do momento, neste caso os migrantes, a cuja opressão pela AIMA e pelo patronato se soma agora o terror dos neonazis. Estes grupelhos fascistas e neonazis sempre existiram, formando uma pequena galáxia de capelas e capelinhas, como 1143, Reconquista, Ergue-te e Habeas Corpus. Hoje estão a tornar-se mais ativos em Portugal.
Uma avaliação sóbria da ameaça
Apesar do clima de forte polarização política, não se tem verificado um desenvolvimento quantitativo notável destes grupos, que nem sequer estão a conseguir renovar-se em termos geracionais de forma substancial, sendo compostos em grande medida pela velha geração dos anos 1990. Basta só dizer que um dos agressores ao ator Adérito Lopes foi o mesmo que assassinou Alcindo Monteiro há trinta anos! Ainda continuam a recrutar algum ou outro jovem, mas nas suas fileiras não se verifica um crescimento notável. Nenhuma das mobilizações que convocaram nos últimos tempos congregou mais de algumas dúzias de fanáticos, a maioria deles lúmpenes envelhecidos e barrigudos, ou, no caso do Reconquista, filhos da betalhice que seguramente procurarão opções políticas mais “respeitáveis” no futuro. Todas as suas concentrações foram ultrapassadas pelas contramanifestações da esquerda, que sempre pôs muitas mais pessoas na rua.
Ora, apesar da sua pequenez, estes bandos representam uma ameaça física real que deve ser levada muito a sério. Isto não se deve ao seu tamanho, mas aos seus métodos terroristas e assassinos, sempre à procura dos alvos mais fáceis e vulneráveis, e devido também à impunidade relativa que lhes garante o Estado. Com efeito, as condições de crise social e de instabilidade política estão a endurecer a atitude do Estado, que vai adotando uma política mais repressiva. A burguesia prepara-se para grandes explosões na luta de classes. A crise obriga-lhe a atacar as condições de vida da classe trabalhadora, e sabe que os seus ataques terão uma resposta. Neste contexto, os bandos fascistas tornam-se mais úteis.
Ao mesmo tempo, a crise capitalista obriga também os políticos burgueses a procurarem bodes expiatórios e a adotarem um pendor mais populista. A demagogia racista promovida pelo Chega, mas também pela AD e até pelo PS, e por todos os média burgueses, cria também um clima favorável aos grupos fascistas, onde se sentem encorajados e ainda mais impunes, sobretudo nos seus ataques contra os migrantes.
O papel do Estado burguês
A impunidade destes grupos, porém, é relativa. O Estado burguês os aproveita, mas os mantém em rédea curta. Como cães de guarda, são premiados quando rendem bons serviços, mas, se forem desobedientes ou extravasarem as suas funções, apanham uma chapada do amo. Isto não se deve às bondades do “Estado de direito”, mas a dois cálculos bastante cínicos. Primeiro, ao desejo das autoridades de aparecerem neutras e equidistantes, tentando ocultar a sua colusão com os fascistas através de operações seletivas e amplamente propagandeadas, o que também tem a vantagem, como explicaremos posteriormente, de poder depois se lançar contra a esquerda com menos empecilhos. Segundo, e ainda mais importante, é o medo que, se os fascistas se extravasarem nas suas provocações, possam desencadear uma reação perigosa pela esquerda.
Ambos estes fatores desempenharam um papel na recente operação policial contra o grupo armado Armilar Lusitano. A rusga aconteceu uns dias após uma multitudinária concentração antifascista às portas do teatro A Barraca, que tinha sido alvejado por neonazis na semana anterior. A proliferação de ataques neonazis estava a atiçar a atividade da esquerda, radicalizando e mobilizando milhares de pessoas, que, justamente, colocavam perguntas sobre a impunidade destes grupos. Ao mesmo tempo, os neonazis estavam a agir com demasiada “audácia” aos olhos das autoridades. Uma coisa é atacar uma loja indiana ou um centro social anarquista, e outra coisa é bater num ator branco antes de uma representação de Camões. Banindo uma (pequeníssima) força neonazi, o Estado tenta travar a mobilização pela esquerda e aumentar a sua autoridade social e a ilusão da sua equidistância. Nas palavras proferidas pelo diretor da PSP após a detenção dos nazis, “um Estado de direito democrático significa que a lei se aplica a todos, até aos polícias” (polícia este que durante anos pôde desenvolver a sua atividade terrorista dentro da PSP). Com esta rusga, o Estado lança também uma mensagem aos fascistas para não ultrapassarem certos limites e… prepara o terreno para atacar a esquerda!
Efetivamente, a repressão contra o “extremismo de direita” aplana o caminho para a repressão contra o “extremismo de esquerda”. Carlos Moedas, autarca de Lisboa, expressou o cálculo do regime burguês após o ataque a Adérito Lopes:
“Deixa-me com uma grande preocupação, entre os extremismos à direita (neste caso) e também extremismos à esquerda, que são violentos. Estes extremos na nossa sociedade são violentos. São os extremos que estão a causar estes problemas.”
Qual é esse “extremismo à esquerda”? Está, por acaso, a comparar o lançamento de tintas ao fato de um ministro com a surra a um ator? Ou um corte de estrada a uma razia contra estabelecimentos de migrantes? Ou acaso podem ser equiparados os assaltos criminosos dos nazis pelas costas a manifestações pacíficas, como aconteceu no 25 de Abril, com a autodefesa dos manifestantes alvejados, organizados em serviços de ordem? Moedas não o explica. Mas deixa o álibi para ilegalizar agora o Climáximo ou o GARA.
Por este motivo não compartilhamos a palavra de ordem de “ilegalizar os grupos neonazis”, lançada pelos Trabalhadores Unidos, porque a repressão contra a direita tornar-se-á mais cedo ou mais tarde contra a esquerda, até contra os próprios Trabalhadores Unidos ou contra nós no CCR. Aliás, lembramos aos Trabalhadores Unidos que esta onda de ataques neonazis acontece num Portugal onde formalmente impera uma constituição que proíbe a propagação de ideias fascistas. Mas a constituição é só um pedaço de papel, que pouco pode fazer contra as veleidades dos corpos repressivos do Estado encarregados de defender a ordem social burguesa. O Estado burguês não pode garantir a segurança dos movimentos operários e sociais ou das comunidades migrantes, nós mesmos devemos combater a ameaça fascista baseando-nos nas nossas próprias forças e com os nossos métodos, os métodos do movimento operário.
Como combatê-los
Os fascistas só compreendem a linguagem da força. Como explica Trotsky:
“A tarefa tática, ou se quiser, “técnica”, é bastante simples – apanhem o fascista ou o grupo isolado de fascistas pelo colarinho, familiarizem o seu rosto com a calçada, tirem-lhes as suas insígnias fascistas e, sem irem mais longe, deixem-lhes com algumas nódoas negras.”
Ora, isto não esgota a questão. Devido à sua organização militar e terrorista e as suas ligações ao Estado, os neonazis têm vantagem quando se trata de pequenos confrontos isolados com militantes antifascistas. A força da esquerda e do movimento operário reside nos seus números. É preciso dar-lhes uma resposta massiva, que os humilhe e os expulse das ruas durante um tempo. Há muitos exemplos históricos disso.
Em 1936, na Inglaterra, quando os fascistas de Oswald Moseley tentaram desfilar por um bairro judeu e operário do leste de Londres, foram recebidos por dezenas de milhares de manifestantes que lhes barraram o caminho e os obrigaram a escapar com o rabo entre as pernas. Os fascistas não voltaram a alçar a cabeça durante vários anos. Temos um exemplo mais recente na Grécia. Após a crise de 2008, num clima de forte radicalização, com inúmeras greves e mobilizações de massas, o Estado grego começou a atiçar os bandos fascistas de Aurora Dourada como força repressiva auxiliar. Porém, as provocações deste partido neonazi acabaram por provocar uma explosão social após o assassinato do rapper de esquerda Pavlos Fyssas em setembro de 2013, seguido de protestos de massas e tumultos que mobilizaram dezenas de milhares de jovens pelo país todo. Para tentar controlar a situação, o Estado refreou este grupo, que acabou sendo ilegalizado em 2020. Não foram os apelos à legalidade burguesa o que derrotou Aurora Dourada, mas a luta de massas da juventude e os trabalhadores, que fez a existência deste partido impossível na prática e levou, anos depois, e como efeito colateral, à sua ilegalização (quando o partido tinha já de facto deixado de operar).
Uma luta deste tipo é possível em Portugal. Há só algumas semanas, no 25 de Abril, por exemplo, um punhado de neonazis semearam o terror numa manifestação de centenas de milhares de pessoas de esquerda e progressistas nas ruas de Lisboa. Bastava um serviço de ordem à altura e uma mínima coordenação para dar uma lição inesquecível aos bandos de Mário Machado. O problema era que o serviço de ordem daquele dia, organizado principalmente pelo PCP, estava mais interessado em policiar as faixas e os blocos do desfile do que em proteger a manifestação dos ataques neonazis. Da mesma maneira, já vimos as grandes organizações da classe operária, nomeadamente a CGTP, emitirem comunicados platónicos contra os grupos de extrema-direita, mas não fazerem nada na prática para os travar na rua, como aconteceu na concentração dos nazis de 1143 em fevereiro do ano passado. Naquele dia, os nazis tiveram uma merecida resposta numa grande concentração antifascista no Intendente, mas que poderia ter sido muito maior se os grandes partidos de esquerda e a CGTP se tivessem mobilizado ativamente na rua.
Os fascistas são poucos, nós somos muitos. A correlação de forças é favorável à esquerda e à classe trabalhadora. O problema é que a nossa força está dispersa e lhe falta uma orientação clara. Com uma organização e direção adequada varreremos os nazi-fascistas das ruas de Portugal. E poderemos ir além disso, esmagando o sistema capitalista que alimenta o fascismo.
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