“Os partidos comunistas dos Estados Unidos, Canadá e Austrália devem travar uma campanha vigorosa contra as leis que restringem a imigração e explicar às massas proletárias destes países que elas também sofrerão danos por causa do ódio racial suscitado por estas leis.” – 4º Congresso da Internacional Comunista , 1922
João Rodrigues, mandatário nacional da CDU nas legislativas de 2024 e candidato independente por Coimbra agora este ano, escreveu recentemente um texto de opinião para o AbrilAbril. Sob o título “razão comunista e iluminismo radical” vai discorrendo uma longa série de “alertas” que os “comunistas portugueses” (portugueses!) foram fazendo ao longo das últimas décadas, como se o PCP fosse uma Cassandra moderna cujas profecias invariavelmente se concretizam, sem que ninguém nelas creia…
Uma dessas supostas infalíveis profecias prende-se com o encerramento do SEF e das suas consequências, o que lhe serve de pretexto para exigir a “regulação do fluxo de fronteiras” que tem a impudência de justificar com motivos humanitários “ninguém deve estar vulnerável perante os traficantes de seres humanos”, mas também “para defender quem cá está”. Isto porque não o fazê-lo será estar “ao serviço do capital mais explorador”! Não falta sequer a solene sentença tautológica: “como se o país tivesse capacidades de acolhimento ilimitadas!”
Tudo isto é absolutamente errado e uma capitulação completa às ideias mais reacionárias que estão a ser disseminadas entre a classe trabalhadora.
Ideias comunistas ou preconceitos chauvinistas?
A primeira coisa que nós, comunistas revolucionários, explicamos é que a imigração em massa é o resultado da exploração, pilhagem, guerra e destruição ambiental que os países capitalistas mais avançados impõem aos países subdesenvolvidos, isto é: do imperialismo. Todos os anos há milhões de trabalhadores pobres a “tentar dar o salto”, arriscando tantas e tantas vezes todas as suas economias e até as suas próprias vidas, porque o capitalismo torna as suas vidas num inferno.
Não há nenhuma “nenhuma regulação de fluxo de fronteiras”, nenhuma deportação para o Burundi como já faz o governo inglês, nenhum “big and beautiful” muro Trumpiano, nenhum suborno a Erdogan para manter milhões de refugiados em campos de concentração ou nenhum pagamento aos países africanos para devolverem milhares de imigrantes ao deserto do Sahara, que farão estancar estes fluxos migratórios. Nem sequer o mar Mediterrâneo é barreira instransponível, apesar dos milhares que morrem todos os anos entre aqueles que o tentam atravessar.
Rodrigues parece ter saudades do SEF, mas dificilmente algum imigrante partilhará o sentimento, sabendo-se como o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras foi alvo de repetidas queixas, tendo mesmo chegado a matar.
Nada disto foi azar ou resultado da ação de meia-dúzia de “maçãs podres” no controlo dos fluxos migratórios: quer a repressão que cai dentro da “legalidade”, quer a atuação ostensivamente criminosa dos agentes do SEF eram a consequência inevitável da sua missão: o policiamento de fronteiras.
São estas barreiras, são estas regulações do “fluxo de fronteiras” que servem de festim às redes de tráfico humano. É a condição ilegal do imigrante que o coloca nas mãos de todo o tipo de máfias, mas é também esta condição que lhe torna mais difícil o acesso ao alojamento, a cuidados médicos ou a um contrato de trabalho com condições e pagamentos de acordo com as leis gerais do trabalho no país de acolhimento. A única coisa que o “controlo do fluxo de fronteiras” promove é a xenofobia, a imigração ilegal e, com isso, a sobre-exploração às mãos da burguesia que “cá está”.
Isto porque a imigração não resulta apenas da necessidade de quem parte, mas também da necessidade de quem (mal) acolhe. As burguesias europeia e norte-americana precisam da imigração. Precisam dos salários baixos e do “exército de reserva de desempregados” proporcionados pela imigração para intensificarem a exploração e conservarem as suas margens de lucro. E precisam também de bodes-expiatórios para dividir a classe trabalhadora e assim mais explorá-la no seu conjunto, desviando as atenções dos reais culpados da crise: eles mesmos, os capitalistas.
E tudo isto é tanto mais verdade, para o caso de Portugal, quanto se sabe que, de acordo com as estimativas do Observatório da Emigração, mais de um terço dos trabalhadores com menos de 40 anos saiu do país – um número que não terá de parado de crescer no último ano e meio, naquele que é o quarto país mais envelhecido do mundo.
Cabe aliás relembrar como, durante dos anos de austeridade supervisionados pela Troika, os fluxos migratórios foram negativos: saía mais gente do país, do que aquela que entrava! Ao longo da história sempre vimos como existindo postos de trabalho, promessas de bons salários e perspetivas de melhoria de vida, haverá imigrantes. Mas se tais perspetivas deixarem de existir, cessarão também os fluxos migratórios. Também em Portugal temo-lo visto, tanto no que à imigração como à emigração diz respeito.
Assim, o suposto “bom-senso” de quem alerta que o país não tem “capacidades de acolhimento ilimitadas” não passa afinal dum lugar-comum sem outra base que não o preconceito e as sensações.
Marxismo e a imigração
Nem a imigração, nem a sua utilização pelos capitalistas para dividir a classe trabalhadora, são novidades. Já nos tempos de Marx, apontava ele que “um estudo sobre a luta travada pela classe operária inglesa revela que, para se oporem aos seus trabalhadores, os empregadores ou trazem trabalhadores do estrangeiro ou então transferem a produção para países onde há mão de obra barata.”
Marx reconhecia o problema: os patrões usavam divisões e fronteiras nacionais para colocar a classe trabalhadora contra si mesma. No entanto, a sua solução não foi defender restrições ou uma gestão das migrações, mas sim a organização internacional da classe trabalhadora: “Perante este estado de coisas, se a classe operária quiser continuar a sua luta com alguma possibilidade de sucesso, as organizações nacionais devem tornar-se internacionais.”
Marx apelou, portanto, a uma maior cooperação entre os movimentos da classe trabalhadora além-fronteiras. E, não por acaso, as passagens citadas são do Congresso de Lausanne da Associação Internacional dos Trabalhadores (a Primeira Internacional) que Marx se dedicou a construir.
Ora, ontem como hoje, o que precisamos não é de proibir os trabalhadores imigrantes de entrarem, mas sim proibir os patrões de empregarem trabalhadores estrangeiros com um salário inferior ao dos trabalhadores que já cá estão, tal como Marx defendeu para o programa do Partido Operário em 1880.
Também Lenine, na esteira de Marx, afirmaria em Capitalism and Worker’s immigration: “A burguesia incita os trabalhadores de uma nação contra os de outra na tentativa de mantê-los desunidos. Os trabalhadores com consciência de classe, percebendo que a quebra de todas as barreiras nacionais pelo capitalismo é inevitável e progressista, estão tentando ajudar a esclarecer e organizar seus companheiros de trabalho dos países atrasados.”
Enfim, não teria passado pela cabeça de Marx ou de Lenine fazer campanha pelo controle de fronteiras. Pelo contrário, há um mundo de diferenças entre argumentar que todos os trabalhadores em Portugal devem trabalhar sob as mesmas condições e salários dignos ou defender uma proibição ou limites à entrada dos trabalhadores estrangeiros. O primeiro serve para unir a classe trabalhadora, o segundo para dividi-la.
Da defesa da produção nacional à defesa do produtor nacional?
Num passado recente foi também possível escutar ao secretário-geral do PCP dizer (tal como agora Rodrigues) que “o país não tem recursos ilimitados”. Isso é uma banalidade, mas uma banalidade perigosa. No limite, o planeta Terra “não tem recursos ilimitados”! Que conclusão quererá Paulo Raimundo retirar desta evidência, que não há recursos no planeta para todos e que temos de fazer sacrifícios?
O problema dos trabalhadores não é a falta de “recursos” do país, mas a sua apropriação pela burguesia. Há 700 mil casas vazias, quase 200 mil “apenas” na área metropolitana de Lisboa. Na verdade, tendo em conta que (pelo menos) 1 em cada 4 operários da construção civil é imigrante, pode-se dizer que, se não fossem os trabalhadores estrangeiros, haveria até menos casas construídas ou recuperadas. Não faltam casas para quem cá vive e trabalha ou para quem cá chegue amanhã. E, se necessário, mais casa poderiam ser construídas.
Os recursos estão aí, mas a burguesia quer pôr-nos a discutir e a disputar a escassez! O mesmo se pode dizer para os transportes, ou para a rede de creches e jardins de infância: não faltam “recursos” para investir, mas os capitalistas e os seus governantes têm outras prioridades.
A razão para a deterioração do SNS não é consequência da chegada de imigrantes, mas do contínuo desinvestimento e cativações orçamentais (incluindo naqueles anos da Geringonça em que o PCP e o Bloco votavam a favor dos mesmos) e do desejo de privatizar o acesso à saúde.
E com os salários? A direita populista e racista repete ad nauseam que a vinda dos imigrantes mantém os salários baixos. Se tantos e tantos jovens recém-licenciados em medicina ou enfermagem saem do país, a culpa é dos imigrantes? E não foram os salários sempre baixos em Portugal? Antes do 25 de Abril nem salário mínimo existia!
Mas nem sequer é preciso ir tão atrás no tempo. Muitos daqueles que nos dizem hoje que são os imigrantes que mantêm os salários baixos, são os mesmos que há 10 anos durante o governo Passos Coelho, nos diziam que “vivíamos acima das nossas possibilidades”, defendendo e aplicando cortes nos salários e nas pensões.
Os capitalistas portugueses sempre se basearam em baixos salários e não na inovação tecnológica! E enquanto houver capitalismo, com a sua divisão internacional do trabalho, em Portugal assim sempre será. Mesmo se, porventura, amanhã os trabalhadores migrantes desaparecessem todos, não iríamos ficar com os salários da Suíça.
Primeiro, porque a economia portuguesa colapsava. Hoje em dia os trabalhadores migrantes têm um peso enorme em variadíssimos sectores, da agricultura à construção, da restauração à assistência aos idosos. Que aconteceria com a saída destas pessoas que trabalham e que também consomem em Portugal? O país entraria, obviamente, em crise. E alguém acredita que os salários subiriam num país em crise? Pelo contrário: ser-nos-iam exigidos sacrifícios “patrióticos”!
Segundo, porque (dado o crónico déficit de investimento dos capitalistas em maquinaria, tecnologia, formação) a economia portuguesa não produz o mesmo grau de riqueza. Como todas as mercadorias, o trabalho tem um valor. O valor do trabalho criado em Portugal é menor do que aquele gerado nos países capitalistas europeus mais avançados, para onde emigram os trabalhadores portugueses em busca de melhores salários.
Terceiro, porque os capitalistas embora possam acomodar certos aumentos de custos (seja com energia, matérias-primas ou salários), não estão dispostos a pulverizar as suas margens de lucro. Ou tentariam passar para os consumidores (ou seja, aos próprios trabalhadores) os encargos desses aumentos ou, não o podendo fazer (por via da concorrência externa, por exemplo), deixando a produção de ser suficientemente rentável… deixariam simplesmente de produzir e redirecionariam os seus capitais para outros ramos, outros países.
É assim que funciona o capitalismo! Ainda há dias, por exemplo, ficámos a saber que as “Caraíbas roubam clientes ao Algarve com preços mais baixos“. Nessa entrevista, o presidente da Associação Nacional de Agências de Viagens alertava que o sector do turismo terá de fazer “ajustamentos”. Nós sabemos o que isso significa: num sector económico onde já labora uma grande quantidade de imigrantes, é para os capitalistas necessário intensificar ainda mais a exploração dos trabalhadores!
O único modo dos trabalhadores conquistarem melhores salários e condições laborais é através da sua unidade e luta organizada contra o patrão. É para evitar essa unidade que servem o racismo e a xenofobia. Enquanto o anátema dos baixos salários ou das rendas elevadas é lançada sobre os trabalhadores migrantes, o dedo não é apontado a quem beneficia com isso: o patrão e o senhorio.
Sob pressão não da “oferta e da procura” no mercado laboral, mas da luta de classes, os patrões podem ser obrigados a concessões reais, mas mesmo essas melhorias são temporárias e essa mesma luta dos trabalhadores mais não é do que uma escola de aprendizagem para a sua tarefa maior: a conquista do poder e a expropriação da burguesia!
Até aqui o PCP e o Bloco têm globalmente sabido resistir às maiores pressões da classe dominante para ceder ao discurso chauvinista, ainda que a defesa dos imigrantes continue sendo mais retórica que prática, mais fundada num moralismo como “o combate entre a decência e o ódio”, do que num discurso e ação de classes. Não tem havido, até hoje, campanhas nacionais de sindicalização entre os trabalhadores migrantes. O mesmo para campanhas para a conquista e defesa de direitos políticos destes trabalhadores. A exceção têm sido algumas campanhas de solidariedade reativas, esporádicas e isoladas.
Contudo, à medida que a crise capitalista se intensificar, as tendências ao protecionismo e às guerras comerciais irão intensificar-se também, pois todas as burguesias quererão “exportar” a crise. Quem hoje defende “a produção nacional” e o pequeno e médio patrão português, mas não o derrubamento do capitalismo, amanhã será chamado a defender “o produtor nacional”, isto é, o trabalhador português contra o trabalhador estrangeiro. E, logicamente, assim o fará!
As pressões sobre a esquerda irão intensificar-se. E, ao contrário do que julgam Rodrigues ou o PCP, ao “serviço do capital mais explorador” estarão não aqueles que defendem a unidade da classe trabalhadora migrante e autóctone por cima de quaisquer fronteiras e que a elas se opõem, mas aqueles que, como eles, clamam pela segurança de fronteiras, em nome de “quem cá está”, justificando-se por não haver “recursos ilimitados”, promovendo a divisão ao invés de organizar os trabalhadores para tomarem conta dos recursos que eles mesmos criam com o seu trabalho!
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